domingo, 27 de novembro de 2011

Trago


Ele seria o voto perpétuo de humanidade dentro de sua casta divina. Repleto de desejo morno, cada uma de suas reentrâncias seria encharcada de líquido ardente e suavemente se enterraria no frescor da madrugada. De manhã era anjo, de noite, homem. Como uma lagarta imortal, ele nasceria borboleta todas as noites apenas por querer ser.
O respirar grave da madrugada lhe disparava o coração e abusava de sua droga preferida. Há certo tempo experimentara pela primeira vez a adrenalina do segredo e por ela se viciara. Trocava segredos com pedras e estrelas, revivendo e compartilhando com elas o dia anterior. Tinha consigo uma trilha sonora inspiradora, seus ídolos, aqueles por quem sentia inveja, primeiro por terem dito tudo o que ele pensava antes mesmo de estar vivo para formular uma frase e depois por terem vivido tudo da forma que ele gostaria de viver sua própria vida. Mas as pedras e as estrelas o fitavam com censura cada vez que ele comentava tal descontentamento. Lembravam-no de sua casta e de que talvez não fosse pro céu. Assunto para se preocupar outro momento.
- Hoje eu acordei com medo, mas não chorei nem reclamei abrigo...
Sua alma sorria, suas extremidades sorriam, cantava baixinho, apenas pra si, mas era o bastante pra se fazer feliz. Feliz sendo fantasma de uma vida noturna, com os sentidos aguçados que o permitiam, mesmo longe, ouvir a respiração dos seus amados que dormiam e sonhavam em outros mundos. Ele não gostava de sonhar no mundo dos sonhos. Ele queria sonhar no mundo dos vivos.
- Vamos! Mais!
Quem dissera?
Não faria importância saber quem estava ali dando os palpites como se manipulasse suas próximas ações. Ele apenas ouvia a voz que saía do fundo de seu coração cinzento, como um escravo obediente, e avançava um pouco mais dentro da escuridão de seus desejos.
O fogo de seu isqueiro não fornecia luz suficiente para trazê-lo de volta de sua viagem, apenas servia para acender seu cigarro. Uma tragada enquanto ele contemplava o céu que um dia seria seu e o mundo, preso em suas mãos, se tornava refém de seu segredo maldito e de seu mirabolante plano suicida que lhe faltava coragem para executar. E brincava com esse mundo como se fosse uma bola e ele uma criança sádica. Gostava de pensar em maneiras de torturar alguém e de torturar a si mesmo com pensamentos ciumentos e com amores impossíveis. Sentia que era pai da noite órfã e que os dois tomariam posse do planetinha preso em suas mãos.
A fumaça pairando no ar era a alma de um cigarro violentado, engolido na ânsia de outro mais. Os poros de sua pele se expandiam e ele ganhava proporções alarmantes dentro da noite. Sua loucura o levava numa queda livre em espiral e ele queria abusar de si mesmo, estudar-se, dominar-se por completo, assumir controle da própria vida e destino e não deixar que mais ninguém fizesse isso por ele. Escorriam lágrimas infantis num choro igual ao de uma criança birrenta. As estrelas o olhavam com pena. Criança egoísta, era isso que ele era.
As pedras amaciavam seu corpo que se derramava numa cena triste, e choravam junto com ele enquanto tossiam por causa da fumaça. O cheiro de tabaco seria facilmente lavado de seu corpo e roupas, mas permaneceriam todos aqueles sentimentos. O vazio seria para sempre seu pior inimigo e seu tão amado esconderijo secreto.
O sol não apareceria depois. Levaria horas ou talvez dias para que ele preponderasse sobre a noite. E aquelas noites de fumaça e poesia seriam cúmplices de todas as aventuras profanas que ele viveria ali e depois, fora dali.
No fim, era apenas ele e o segredo de sua existência. Sua humanidade depravada, deslocada e honesta. Ele e sua própria morte e todo bem que aquela violência lhe fazia.

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