quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Cabelos brancos

Aquele momento foi diferente. O momento, resultado de um estímulo qualquer que desencadeou a compreensão de algo mais do que simples que estivera o tempo todo estampado bem ali, diante dos olhos de Marcos, mas que, por algum motivo, ele não conseguia ver. Ele deixou cair a caneca cheia de café no chão da cozinha (ela se espatifou com um baque estridente que seria reclamado mais tarde pelo vizinho de audição sensível do andar de baixo) e correu até o telefone. Discou o número que ainda estava gravado na memória, mesmo depois de um ano, e aguardou a resposta, sentindo uma desconfortável sensação no estômago.
- Alô? – atendeu a voz de uma mulher, quase um sopro num tom agudo e aveludado. – Marcos?
- Seus cabelos ficaram brancos. – ele disse sem rodeios.
- O quê? – a voz da mulher não se alterava com facilidade. – O que você quer dizer com isso Marcos? E por que me ligou às onze da noite?
- Eu liguei pra te dizer que seus cabelos ficaram brancos. – sua voz tentava forçar um pensamento particular e óbvio em seu sentido próprio. – Eles ficaram brancos e eu entendi.
- Você bebeu? – ela quis rir, mas o máximo que Marcos percebeu pela modulação da voz foi que ela estava sorrindo agora e isso o deixou tranquilo. – Meu cabelo não ficou branco! Do que você ta falando?
- Você não se lembra? Dois meses antes de você sair de casa. Você olhou no espelho e percebeu que havia um punhado de cabelos brancos na parte de trás da sua cabeça, assim, acima da nuca. Não se lembra? – agora ele sorria também.
- Ah... – ela finalmente estava começando a acompanhar a conversa. – Sim, sim, eu me lembro disso. Você me ligou pra falar isso? O que você quer, exatamente?
- Eu quero que você saiba que eu entendi agora.
Fez-se silêncio. Um maremoto de sentimentos arrasou a mulher que estava sentada na cama, o livro em seu colo com a página marcada para que pudesse retomar a leitura depois de atender ao telefone. O tempo já havia passado, tudo estava bem. Não havia necessidade daquela conversa. Pressentiu que o que ouviria nos próximos minutos de nada adiantariam agora.
- Entendeu o quê, Marcos?
- Que você também sofreu. – e uma lágrima ligeira escorreu pelo seu olho direito, acompanhada por uma atrasada que desceu do lado esquerdo do rosto e foi se juntar à irmã no chão da sala.
- Eu realmente preciso dormir, Marcos... – fantasmas retornando dos túmulos, demônios sendo acordados, feridas cutucadas... Ela não tinha tempo para isso.
- Eu sei, eu sei. – ele abaixou a cabeça e mais duas lágrimas brotaram em seus olhos. – Sei que você trabalha, sei que você tem pouco tempo para tudo isso, sei que você nem mesmo quer saber disso e eu respeitei até aqui o seu pedido, o seu pedido de que eu não voltasse atrás, não fosse procurar você para contar nada da minha vida nem pra perguntar da sua, nem ao mesmo pra saber se você estava bem ou viva. Mas eu te liguei porque você precisava saber. Precisava saber que eu não sou um qualquer. Não sou um monstro. Eu só precisei de um tempo um pouco maior para entender seus sinais.
Ela não sabia o que responder. Sentiu repentinamente que estava frio no seu quarto no décimo andar. Fez menção de se levantar e fechar a janela, mas o pensamento lhe escapou tão rápido quanto apareceu. Estava plenamente concentrada naquelas palavras e na sua redenção.
- Você sabia que isso é um reflexo? Acontece e não é raro. Os cabelos podem ficar brancos devido ao nível de estresse da pessoa. E foi isso que você me mostrou. Não foram apenas suas palavras rancorosas como socos que você distribuía todos os dias. Enquanto você dizia uma coisa, seu corpo dizia outra. Você sofreu.
- Você sabe que sim. – ela disse com a voz controlada.
- Não, não to falando de depois. To falando do tempo em que ainda brigávamos. E você dizia coisas terríveis sobre eu ser uma decepção e sobre não ser o homem que você imaginou que eu fosse, que só se arrependia dos últimos três anos... Mas era mentira, não era?
- O que você acha? Sinceramente? – e havia certo sarcasmo em sua voz.
- Acho que sim. – sarcasmo que talvez tenha passado despercebido por Marcos. – Você estava sofrendo com todo aquele cenário de destruição que era nossa casa. Assim como eu. Ou talvez até mais. Porque eu colocava tudo na mesa, principalmente na hora de jantar. Você, não. Você sofreu, meu amor. Você sofreu...
- Pode haver centenas de explicações para o aparecimento daquele branco nos meus cabelos.
- Só existe uma. E você sabe disso.
Orgulho é um escudo que longe o suficiente pode ser belo. De perto pode ser irritante. Mas sempre é feito de material frágil. Um escudo de palha. E Marcos estava prestes a atear fogo naquela defesa inútil.
- Eu sinto muito. Eu me coloquei no centro de tudo como uma criança birrenta. – ele disse e já não chorava mais. Estava sendo um homem corajoso, ou, pelo menos, se convencia de que sim. – Não te dei espaço para sofrer. Mas que droga, não te dei espaço nem para falar, pedir ou argumentar, acreditando que o pesar era só meu... E quando você sofreu, eu poderia ter te dado espaço para sofrer e isso talvez tivesse te ajudado a olhar mais precisamente para as coisas e mudar, crescer, evoluir, mas não consegui fazer isso porque eu estava no centro do universo. E aí seu cabelo ficou branco e nós rimos e transamos naquela noite e foi maravilhoso, mas o dia amanheceu e o horror recomeçou com os primeiros raios de sol... Eu até tenho marcas que talvez não desapareçam nunca mais. Mas o que mais me doeu mesmo foi ver você ir embora.
- Você me mandou embora. – magoava-se mais a cada palavra.
- Não porque não te amava mais. Mas porque te amava demais. E nosso caminho não nos fazia feliz.
Um silêncio maior todo dedicado às lágrimas e às gigantes tsunamis de emoções que varriam os dois de seus lugares cômodos e os transportavam para um ano atrás repleto de memórias.
- Você pintou seu cabelo depois. E aí não percebemos que ele era um sinal do seu corpo, um sinal que indicava alguma enfermidade. Achamos apenas que era velhice precoce. Mas era, na verdade, a morte de algo.
- Não seria da juventude mesmo? – ela indagou com voz trêmula e insegura.
- Não. O que morria era algo belo demais para ser tão efêmero como a juventude. Era algo morno e quase palpável.
- O amor?
- Não sei.
Alguma sirene cantarolou lá fora, no lado da cidade em que Marcos morava. Enquanto ela chorava mais um pouco e ouvia o elevador do prédio trabalhar em sua subida, Marcos tratava de recompor sua emoção.
- Você me perdoa? – ele indagou, sincero e otimista.
E então era esse o epílogo do livro que escreveram juntos. Sem recomeços, porque eles são como promessas velhas que não cumprem seu papel. Sem picos extremos de drama adolescente. Apenas uma redenção inusitada e até mesmo bem-vinda. Um presente? Noites melhores de sono? Paz interior? A luz verde que libera a estrada que se estica à frente, cheia de possibilidades?
- Sim. – ela disse e sorriu mais uma vez.
Desejaram boa noite um para o outro e foram deitar imediatamente, abraçados com as lembranças de uma vida que era tão familiar que foi como dormir num berço no primeiro ano de vida. Aquele algo morno e quase palpável ainda estava lá, adormecido também, mas despertaria prontamente, quando a hora chegasse, pois essa força estranha se alimenta de movimentos e nunca chega a lugar nenhum. E não é mesmo pra chegar a algum lugar. É algo que apenas caminha.

E isso proporciona felicidade.