domingo, 28 de julho de 2013

O poema que Ella me contou [5]

Tive um tempo. Escondida debaixo da escada. Dentro do guarda-roupa. No porta-malas. Escondida. Sufocada. Mas tive um tempo para poder te escrever mais uma carta.

Elle anunciou que chegaria. Deixou tudo pronto. Preparou-me inteira, como um médico que prepara um paciente para a cirurgia. Fui preparada com precisão cirúrgica. Pois o que ele expurgaria de mim mais tarde...
Elle costumava cantar bastante, talvez tenha sido cantor numa vida passada. Ele entrou no recinto cantando sobre como não viveria como alguém que só espera um novo amor, pois, enfatizava ele, havia outras coisas no caminho pelo qual seguia. E ele sempre estava procurando. Procurava algum carro novo, alguma foto antiga, alguma lembrança reprimida de sofrimento familiar, alguém que ocupasse seus lugares... Ele se resumia em procura. Nunca em encontro. Sempre em procura.
E suas procuras, tão dispensáveis, o tinham trazido até ali. E eu o vi pela primeira vez. Claro, soube de tudo isso depois apenas. Não sustentamos olhar. Seria arriscado demais. Eu, que nunca mais seria completa, não queria nem sequer pensar na possibilidade de repousar em seu dorso. Mas era só o que eu conseguia pensar. Repousar junto dele.
Quando o conheci melhor, foi como terminar um quebra-cabeça de mais de mil peças. Dava certo. Completavam-se as peças. Como engrenagens. Como numa música de Chico Buarque. Como uma taça de vinho no frio de Julho. E eu só queria saber em qual rua a minha vida encostaria na dele. Uma promessa esquecida. Ele era uma promessa adormecida. Uma promessa quente, regada a álcool, música... Aventura.
Eu fiquei confusa por muito tempo. E confundi todo mundo ao meu redor. Até que o universo conspirou para que pudéssemos experimentar mais de perto o corpo um do outro. E foi mágico. Erótico. Eu me rendi. Pus as mãos pra cima e simplesmente me entreguei com a alma toda. Fundimo-nos num abraço apertado e o mundo parou por várias horas. E quando nos olhamos eu não sabia o que falar. Logo eu, que treinava tantas frases de efeito no espelho para quando esse momento chegasse, fiquei sem palavras. E talvez eu nunca mais voltasse a falar. Ou a amar novamente. Pois estava embriagada por aqueles olhos de James Dean. E ele emudeceu também diante de mim. Ficamos mudos, contemplando a promessa gritante refletida no olhar do outro.
Estivemos juntos por um bom tempo depois daquilo.
Hora de testar a fortaleza tão minuciosa que eu tinha erguido diante de mim.
Bom, o fracasso foi épico. De nada adiantaram minhas defesas. Eu voltei a ser menina. Adolescente. Passional. Fui adoecendo. Querendo demais. Esperando demais. Com tanta urgência que ficava sem ar só de olhar no espelho. De tirar uma foto. De viver mais. Eu não cabia em mim. E por quê? O que ele fazia de tão especial? Por que era homem? Ou por que era incompleto? Não havia nada de diferente nele! Nada!
Ele nem ao menos estava comigo. Estava. Mas não estava.
Coitado, ele tentava.
Mas não estava.
Agora, enquanto escrevo pra você, eu sinto pena de todo aquele sofrimento dele. De toda aquela incompletude que ele vivia. Ele nunca me fez mal. Ele apenas tentava. Eu que fazia mal a mim mesmo. E tudo que ele fez foi pouco, porque eu estava apavorada. Ele me transformou nesse monstro devorador, abusivo, um monstro enlouquecido, egoísta. Eu o cercava no escuro, o pressionava no escuro. Queria respostas. Queria promessas. Que nunca vieram. Não viriam mesmo. Ele me dilacerou. Ele deixou todas minhas vísceras expostas na mesa, no chão, na praça. Ele me virou do avesso. Eu me perdi completamente naqueles meses. E só porque não o alcançava. Não o resgatava. Não importava o que fizesse.
Sabe? Há algumas pessoas que são quebradas. Elle era quebrado. Eu pude ver de perto como é uma pessoa dessas e é horrível. A vida se perdendo e escorrendo dos olhos, que sempre estão distantes. É muito triste de se ver. E foi o amor que o deixou assim. A promessa dolorosa e incompreensível, que desafia a inteligência e nos coloca diante de Deus e do Diabo. O amor que também não permaneceu ao seu lado, que também o destruiu, o consumiu e sumiu. E ele nunca mais se ergueria de novo.
O amor.
Não sei que nome dar. O amor que eu senti por ele me destruiu por inteira. Quando ele partiu correndo sem olhar pra trás, eu estava em cacos pela rua íngreme. Ninguém me juntou. Não quis que ninguém me tocasse. Eu mesma me recompus. E evoluí. E aprendi. Tive ódio depois. Por muito tempo cultivei demônios como numa plantação, num beiral de janela enfeitando meus olhos e tudo que eu via. Mas evoluí. Compreendo-o como uma mãe agora. Mas, mais do que isso. Foi ele quem me ensinou que eu sou muito mais importante do que qualquer relação que eu terei na vida. Mesmo assim, sinto que algo ele quebrou em mim também. Desde que ele se foi, há algo que nunca mais voltou. Não sei dizer o que é.
Foi ele que me deu a ideia de escrever cartas.
Sinto saudade de sua presença na madrugada. Sempre quando é madrugada. Sempre quando eu tenho fome. Sempre quando alguém canta algo que ele cantava. Sempre quando penso em me render. Em erguer os braços e me entregar. Quando bebo uísque. Quando tenho vontade, mas tenho medo. Quando sou imatura. Quando sou criança. Quando sou adulta. Quando sofro.
Mas nunca sei disso.
Quando tudo se findou, ele dizia que o que tínhamos era real.

Nunca saberei essa resposta.
Eu não sei o que sentir. Talvez essa seja a conclusão dessa carta. O desfecho dessa história mal contada que ainda tem pontas soltas. Sei que ele me fez crescer.

Só isso.

domingo, 21 de julho de 2013

Nada a ver essa perdição toda

Perdimento.
Que me faço pequeno e diminuto dentro deste casulo que não permite nem a passagem do ar, proíbe a circulação da vida, a aprisiona, fazendo tudo se comprimir numa vida encaminhada para dentro.
Que sonho é esse que, de repente, abre um rombo dolorido nas paredes finas e resistentes desse asilo? Escoam as frases feitas, inúmeras ofensas, sentenças cruéis que servem de subterfúgio para meus pesares e abrem espaço para a luz... Como não poderia ter medo?
Como poderia deixar de temer a luz? A possibilidade de mudança... De melhora? Quando tudo que é mais confortável permanece inerte no escuro...
Que sorriso é esse, meu Deus?
Uma baforada de ar no meu rosto e um caminho todo pela frente. Eu me abraço te abraçando. Quero te beijar para beijar a mim mesmo, que não me encontro há tanto tempo... Quero ser de ti, para ti, para que, então, eu seja meu e possa sobreviver da condenação que me imponho com dentes à mostra.
Eu sou de tudo um pouco, menos caminho. Menos resposta. Nada que comece de novo. Apenas visualizo meias possibilidades através do alto do meu mirante. Acompanho a luz que guia os piratas de volta para casa, mas não vou com eles. Não tenho tesouro. Nunca vi tesouro escondido que valha à pena.
Os maiores tesouros estão à mostra.
Eu estou escondido. Com tubos umbilicais me nutrindo de poucos prazeres. Nutrindo com vícios. Carinho. Miserável carinho vicioso. Se me parissem... Um natimorto.
Mas aquele rombo que tu abriste na fina película que me isola do cosmo é como um sopro de vida lispectoriano que me cria novamente enquanto vou te tocando os cabelos, amarrando um abraço apertado que, na realidade, é o meu encontro comigo mesmo.
Você é uma promessa muda. A sugestão da mais remota possibilidade.
É a salvação.

Just say the word.