sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Alguém [13]

Alguém que come suas refeições sozinho enquanto ouve Janis Joplin.
Alguém que rasga os vestidos, as camisas, as cuecas, as fronhas, os tapetes e põe fogo na cozinha, no quarto, na sala e na sacada.
Alguém que nunca estará lá inteiro porque metade já se foi como prejuízo da vida que leva.

Alguém que te amou mais do que qualquer outro, então venha e chore.

Alguém [12]

Alguém que faz rebelião sozinho no meio da praça.
Alguém que nunca se contenta com pouco e tem você nas mãos.
Alguém pra quem você dá o mundo e fica por isso mesmo.

Alguém que não sabe nada.

Alguém [11]

Alguém que te vê todos os dias, mas não te enxerga com clareza.
Alguém que ri das suas piadas, faz festa das suas raivas e te abraça e beija ao se despedir.
Alguém que oferece tão pouco e que está tão perto mas, ainda assim, tão distante, enigmático e desafiador.

Alguém que você quer decifrar e devorar o quanto antes.

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Noites livres

Nunca deixe roupas suas na minha casa. Repito: nunca deixe roupas suas na minha casa.
Porque eu não conseguiria me conter. Iria vesti-las só para poder sentir você tocando minha pele, como fazemos em todas as noites livres. A excitação de ter você sobre meus ombros, abraçando meu tronco, me envolvendo com seu cheiro e eu me deleitando com nossa dança embalada a vinho e a poesia. Meus braços entrariam nas suas mangas e eu te tomaria como amante durante toda a madrugada, enquanto o calor de seu tronco aquece meu corpo e a noite fria se torna verão.
O que essas pernas por cima da minha poderiam proporcionar?
Trabalho.
Trabalharia com coxas e panturrilhas enquanto visto sua calça até que, ao alcançar a cintura, nossos sexos estejam se tocando suavemente como dois pássaros engaiolados. E estaríamos próximos no momento supremo do gozo.
Eu quero experimentar sua roupa íntima. Experimentar, no teu orgasmo, o sabor que existe em tocar o meu centro, em carregar nas mãos a minha divindade transvestida de homem. Quero ver o que sobra e o que falta. Onde há espaço e onde os ângulos favorecem.
Certa vez, você esqueceu seu travesseiro aqui.
Eu dormi com ele três dias e três noites até que você veio buscá-lo. Ele cheirava a nós dois. Eu nos reproduzi no cheiro que permaneceu naquela fronha e foi então que nasceu nosso filho. Sonhei sequestros, sonhei medos, sonhei desejos e sonhei furtos. Todos envolvendo você e seu corpo delicioso que me mantém erguido e firme, andando a passos largos para te ver todas as noites livres.
Eu te quero inteiramente. Por várias noites, rolando delicadamente no meu lençol azul enquanto nos vestimos um do outro. E, nessa troca, quero desvendar o enigma do seu semblante, do seu cabelo, da sua covardia quando se trata de me tomar por inteiro.
Vista-me e saia na rua só pra ver o que vão dizer de ti.
E volte para as noites de troca, de riso, de elevação carnal, de desejo latente. Volte e se engaiole comigo. Vista minha pele e meus pelos e pelo resto da vida seremos fiel a essa nossa natureza estranha e instigante que incinera na noite e renasce pela manhã. Como a noite desvirginando a madrugada.

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Por falar em eternidade

Esta música é uma composição minha e seu nome inspirou a criação do blog.

Hoje o dia tá claro pra ser livre como quando se quer muito viver.
Hoje a gente vai construir uma casa com o que der pra aproveitar.
Ninguém vive de pouco e pouco não é o suficiente pra nos tirar do escuro.
Eu nem sei mais do que eu sou capaz pra poder te reinventar.


Vivemos nessa imensidão de paixão e não é o sol,
Não é o mar, não é o sim, não é não
Que nos trouxe aqui pela mão.

Quando tudo fizer sentido as coisas não vão mais importar.
Já vai ser ontem o presente num passado tão carente.
Me mostre onde fica o planeta mais distante que eu vou te buscar.
Na eternidade fica tão mais fácil te reencontrar,
Pois eu me guio pelo o que você deixou em mim.

Vivemos nessa imensidão de paixão e não é sol,

Não é o mar, não é o sim, não é o não,
É o que nos trouxe aqui pela mão.

Fez silêncio no dia em que eu cheguei,
Seu sorriso era tão lindo.
Notei alguma coisa nova em seu coração.
Era a certeza de estar comigo.
Que tal fazer isso durar?

Vivemos nessa imensidão de paixão e não é sol,
Não é o mar, não é o sim, não é o não,
É o que nos trouxe aqui pela mão.

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Alguém [10]

Alguém que te devora ao melhor estilo Djavan.
Alguém que te aprecia com uma precisão cirúrgica num nível quântico.
Alguém com quem seus olhos flertam todos os dias em busca de algo maior que o cosmo.

Alguém que é infinito.

Alguém [9]

Alguém que vai te deixar esperando na esquina debaixo da chuva.
Alguém que vai te buscar na rodoviária e irá embora para sempre num voo sem escalas.
Alguém que viajará com você em busca do tesouro perdido em algum lugar da América Central.

Alguém que é partida, mas nunca chegada.

Alguém [8]

Alguém que é puro desejo.
Alguém que pulsa, lateja, engloba, engole, absorve, comprime, expande, engrandece, empobrece, enlouquece, some, quebra, multiplica, fere, queima.
Alguém com quem se sonha.

Alguém que te toca e te faz levitar.

domingo, 3 de novembro de 2013

Alguém [7]

Alguém que nasceu no mesmo dia que você, leu os mesmos livros e foi aos mesmos shows que você.
Alguém que nunca disse estar apaixonado.
Alguém que definhou enquanto você nem via.

Alguém que morreu contigo.

Alguém [6]

Alguém de cabelos compridos.
Alguém que te roubou uma vez e deixou um sabor maravilhoso em sua boca.
Alguém que você nem sabe quem é, mas você quer conhecer melhor.

Alguém que, em tempos de falta de tudo, se tornou especial.

Alguém [5]

Alguém que não te percebe.
Alguém que se protege no silêncio.
Alguém morto por dentro.

Alguém pra ser resgatado.

Alguém [4]

Alguém que se anuncia quando está entrando no recinto.
Alguém que permanece em você como cheiro.
Alguém cujo cheiro doce mais parece uma profecia, um aviso, uma música de Chico Buarque.

Alguém que está tão perto e, mesmo assim, você quer mais.

Alguém [3]

Alguém que se encaixa perfeitamente nas tuas medidas, nas tuas roupas, no teu espaçamento do banco do carro, na tua aliança.
Alguém que usa as mesmas expressões que você, acentua errado e põe as vírgulas nos momentos mais decisivos e comprometedores.
Alguém que te abraça e não te solta.

Alguém que você abraça e não quer soltar.

Alguém [2]

Alguém poeta da dor cuja voz se perde nas melodias mais rasgadas e viscerais do rock.
Alguém que potencializa teu momento com adrenalina.
Alguém que te põe a chorar e ao desesperar.

Alguém que simplesmente te consome e incinera.

Alguém [1]

Alguém que abrace tua estranheza e não te solte até terminar a tempestade.
Alguém que é louco o suficiente pra te provocar e permanecer depois para colher os efeitos.
Alguém que inebria, entontece.

Alguém assim, fascinante.

terça-feira, 8 de outubro de 2013

O poema que Ella me contou [6]

O hoje é um fim.
Determinante fim. Inexplicável fim. Inevitável fim. Eu e Elle. Fim.
Quando eu sarar, talvez eu ria disso tudo. Fui paciente e paciente agora sou dessa minha doença rara.
Quando nossas peles se aproximaram, os lábios vieram juntos como que por acaso, uma mão na nuca dElle e uma na minha nuca, mãos imaginárias nos empurrando para o precipício só pra ver o que viria depois do salto. Quando a gente se tocou mais pra baixo não foi acaso. Demos um nome ao que veio em seguida, porque tomamos as rédeas do desejo: chamamos de destino.

O destino nos uniu. Algo maior. Projeto inexplicável das probabilidades absurdas que permeiam a vida. Vamos mergulhar mais fundo só pra ver o que vai dar?
O que começou confuso se tornou família.
Eu ganhei uma família com Elle. Filhos. Netos. Bisnetos. Tios. Avós. Pai, mãe. Até mesmo irmãos. Vínculos reais e sinceros. Laços frágeis que se fortaleceram no tempo e nas intempéries.
O que eu posso dizer de um fim inevitável, por tanto tempo adiado, que eu não queria que acontecesse?

Por muito tempo, inimigos da eutanásia.
E foi num último suspiro por entre lágrimas e gritos e desespero e medo que eu desliguei os aparelhos.

Elle ainda é tudo.
Muito maior do que tudo que você já leu. Faz os outros poemas que te mandei virarem pó. Serem apenas poesia. O que eu quero dizer com esta carta é que eu vivi uma vida inteira dentro da minha vida.

Vivo absorta em pensamentos de nossos momentos. Ainda posso tocá-los, cheirá-los, me aquecer neles, dormir com eles.
Tivemos uma casa modesta, com um cachorro, uma flor na varanda, um carro, uma piscina, uma biblioteca cheia de romances e uma estante repleta de filmes. Casamos no começo de Março sob uma garoa fina, sentindo o calor subindo do asfalto. Nos casamos num palco. Escondidos. Elle dormia no meu peito para que eu o protegesse de tudo aquilo que ele tinha medo e eu o segurava para que não fugisse. Como se ele fosse capaz de fugir. Ele nunca fugiu.
Eu fugi uma vez. Mas voltei.

Travamos uma guerra terrível por muito tempo. Fizemos as pazes e continuamos em guerra. Viver com Elle parecia uma luta interminável, como passar o dia remando e, na hora de dormir, ter que remar mais pra chegar em lugar nenhum. Num certo dia, senti falta de propósito. Fui dormir com uma pulga atrás da orelha. E estava certa.

Mas não quero me prender aos pontos negativos. Eu só queria compartilhar com você que eu acreditei em algo real, por mais incrível que possa parecer, já que você agora me conhece tão bem. Mais que isso! Vivi algo real. Tenho fotos pra te mostrar. Posso te enviar, se você quiser.

O que eu vou fazer agora com nossos filhos, depois de tantos anos? Eles não ficarão comigo, porque eu não paro. Não ficarão com Elle, porque elle não leva jeito. Ficarão soltos? Posso deixá-los dormindo no quarto, trancados, em sono profundo e sem sonhos enquanto esperam seus pais ficarem prontos para resgatá-los. 
Eu acho que será bem assim. Nós ficaremos prontos e voltaremos. Bom... Talvez, não sei.
O que eu to falando?
Não voltaremos. Aquelas risadas na madrugada não voltarão mais. O amor feito embaixo das cobertas naquele quarto pequeno ou as mãos que se uniam na hora da refeição ou mesmo o abraço aperto a cada despedida e a cada chegada... Essas coisas especiais... Foram embora. Foram embora com o respeito tão árduo de se encontrar, com a intimidade acolhedora... Com nossas cartas, nossas canções que falavam de olhos, de carvão...
Quando elle sorria eu via um Elle inocente. Que ninguém nunca verá. Esse Elle é um lado dElle que ninguém mais conhecerá. Uma face só minha. Que só se revela sob o meu olhar atencioso.

Acho que aguardarei, sem chorar, enquanto me declaro para sempre fiel a elle. Fiel ao nosso amor, as nossas escapadas, as nossas guerras travadas, as nossas viagens, aos nossos abraços, aos nossos hábitos... Serei para sempre fiel, mesmo que eu esteja sozinha.
Quando você for dormir, não chore. Não especule meus sonhos. Eles são meus. Meus e dElle. Eu não vou dormir ainda. Não hoje, nem amanhã. Ficarei de vigia. Orando. Esperando algo que não sei o que é. Sentindo falta de algo que não sei o que é. Sendo fiel.

Passado e futuro se confundem enquanto escrevo. Como se eu ainda esperasse.
Você já sabe de todos agora. Eu voltarei a te escrever quando houver algo sobre um novo Elle pra te contar. Por enquanto, apenas o silêncio.

Eu o amei de verdade, sabe?
Muito.

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Cabelos brancos

Aquele momento foi diferente. O momento, resultado de um estímulo qualquer que desencadeou a compreensão de algo mais do que simples que estivera o tempo todo estampado bem ali, diante dos olhos de Marcos, mas que, por algum motivo, ele não conseguia ver. Ele deixou cair a caneca cheia de café no chão da cozinha (ela se espatifou com um baque estridente que seria reclamado mais tarde pelo vizinho de audição sensível do andar de baixo) e correu até o telefone. Discou o número que ainda estava gravado na memória, mesmo depois de um ano, e aguardou a resposta, sentindo uma desconfortável sensação no estômago.
- Alô? – atendeu a voz de uma mulher, quase um sopro num tom agudo e aveludado. – Marcos?
- Seus cabelos ficaram brancos. – ele disse sem rodeios.
- O quê? – a voz da mulher não se alterava com facilidade. – O que você quer dizer com isso Marcos? E por que me ligou às onze da noite?
- Eu liguei pra te dizer que seus cabelos ficaram brancos. – sua voz tentava forçar um pensamento particular e óbvio em seu sentido próprio. – Eles ficaram brancos e eu entendi.
- Você bebeu? – ela quis rir, mas o máximo que Marcos percebeu pela modulação da voz foi que ela estava sorrindo agora e isso o deixou tranquilo. – Meu cabelo não ficou branco! Do que você ta falando?
- Você não se lembra? Dois meses antes de você sair de casa. Você olhou no espelho e percebeu que havia um punhado de cabelos brancos na parte de trás da sua cabeça, assim, acima da nuca. Não se lembra? – agora ele sorria também.
- Ah... – ela finalmente estava começando a acompanhar a conversa. – Sim, sim, eu me lembro disso. Você me ligou pra falar isso? O que você quer, exatamente?
- Eu quero que você saiba que eu entendi agora.
Fez-se silêncio. Um maremoto de sentimentos arrasou a mulher que estava sentada na cama, o livro em seu colo com a página marcada para que pudesse retomar a leitura depois de atender ao telefone. O tempo já havia passado, tudo estava bem. Não havia necessidade daquela conversa. Pressentiu que o que ouviria nos próximos minutos de nada adiantariam agora.
- Entendeu o quê, Marcos?
- Que você também sofreu. – e uma lágrima ligeira escorreu pelo seu olho direito, acompanhada por uma atrasada que desceu do lado esquerdo do rosto e foi se juntar à irmã no chão da sala.
- Eu realmente preciso dormir, Marcos... – fantasmas retornando dos túmulos, demônios sendo acordados, feridas cutucadas... Ela não tinha tempo para isso.
- Eu sei, eu sei. – ele abaixou a cabeça e mais duas lágrimas brotaram em seus olhos. – Sei que você trabalha, sei que você tem pouco tempo para tudo isso, sei que você nem mesmo quer saber disso e eu respeitei até aqui o seu pedido, o seu pedido de que eu não voltasse atrás, não fosse procurar você para contar nada da minha vida nem pra perguntar da sua, nem ao mesmo pra saber se você estava bem ou viva. Mas eu te liguei porque você precisava saber. Precisava saber que eu não sou um qualquer. Não sou um monstro. Eu só precisei de um tempo um pouco maior para entender seus sinais.
Ela não sabia o que responder. Sentiu repentinamente que estava frio no seu quarto no décimo andar. Fez menção de se levantar e fechar a janela, mas o pensamento lhe escapou tão rápido quanto apareceu. Estava plenamente concentrada naquelas palavras e na sua redenção.
- Você sabia que isso é um reflexo? Acontece e não é raro. Os cabelos podem ficar brancos devido ao nível de estresse da pessoa. E foi isso que você me mostrou. Não foram apenas suas palavras rancorosas como socos que você distribuía todos os dias. Enquanto você dizia uma coisa, seu corpo dizia outra. Você sofreu.
- Você sabe que sim. – ela disse com a voz controlada.
- Não, não to falando de depois. To falando do tempo em que ainda brigávamos. E você dizia coisas terríveis sobre eu ser uma decepção e sobre não ser o homem que você imaginou que eu fosse, que só se arrependia dos últimos três anos... Mas era mentira, não era?
- O que você acha? Sinceramente? – e havia certo sarcasmo em sua voz.
- Acho que sim. – sarcasmo que talvez tenha passado despercebido por Marcos. – Você estava sofrendo com todo aquele cenário de destruição que era nossa casa. Assim como eu. Ou talvez até mais. Porque eu colocava tudo na mesa, principalmente na hora de jantar. Você, não. Você sofreu, meu amor. Você sofreu...
- Pode haver centenas de explicações para o aparecimento daquele branco nos meus cabelos.
- Só existe uma. E você sabe disso.
Orgulho é um escudo que longe o suficiente pode ser belo. De perto pode ser irritante. Mas sempre é feito de material frágil. Um escudo de palha. E Marcos estava prestes a atear fogo naquela defesa inútil.
- Eu sinto muito. Eu me coloquei no centro de tudo como uma criança birrenta. – ele disse e já não chorava mais. Estava sendo um homem corajoso, ou, pelo menos, se convencia de que sim. – Não te dei espaço para sofrer. Mas que droga, não te dei espaço nem para falar, pedir ou argumentar, acreditando que o pesar era só meu... E quando você sofreu, eu poderia ter te dado espaço para sofrer e isso talvez tivesse te ajudado a olhar mais precisamente para as coisas e mudar, crescer, evoluir, mas não consegui fazer isso porque eu estava no centro do universo. E aí seu cabelo ficou branco e nós rimos e transamos naquela noite e foi maravilhoso, mas o dia amanheceu e o horror recomeçou com os primeiros raios de sol... Eu até tenho marcas que talvez não desapareçam nunca mais. Mas o que mais me doeu mesmo foi ver você ir embora.
- Você me mandou embora. – magoava-se mais a cada palavra.
- Não porque não te amava mais. Mas porque te amava demais. E nosso caminho não nos fazia feliz.
Um silêncio maior todo dedicado às lágrimas e às gigantes tsunamis de emoções que varriam os dois de seus lugares cômodos e os transportavam para um ano atrás repleto de memórias.
- Você pintou seu cabelo depois. E aí não percebemos que ele era um sinal do seu corpo, um sinal que indicava alguma enfermidade. Achamos apenas que era velhice precoce. Mas era, na verdade, a morte de algo.
- Não seria da juventude mesmo? – ela indagou com voz trêmula e insegura.
- Não. O que morria era algo belo demais para ser tão efêmero como a juventude. Era algo morno e quase palpável.
- O amor?
- Não sei.
Alguma sirene cantarolou lá fora, no lado da cidade em que Marcos morava. Enquanto ela chorava mais um pouco e ouvia o elevador do prédio trabalhar em sua subida, Marcos tratava de recompor sua emoção.
- Você me perdoa? – ele indagou, sincero e otimista.
E então era esse o epílogo do livro que escreveram juntos. Sem recomeços, porque eles são como promessas velhas que não cumprem seu papel. Sem picos extremos de drama adolescente. Apenas uma redenção inusitada e até mesmo bem-vinda. Um presente? Noites melhores de sono? Paz interior? A luz verde que libera a estrada que se estica à frente, cheia de possibilidades?
- Sim. – ela disse e sorriu mais uma vez.
Desejaram boa noite um para o outro e foram deitar imediatamente, abraçados com as lembranças de uma vida que era tão familiar que foi como dormir num berço no primeiro ano de vida. Aquele algo morno e quase palpável ainda estava lá, adormecido também, mas despertaria prontamente, quando a hora chegasse, pois essa força estranha se alimenta de movimentos e nunca chega a lugar nenhum. E não é mesmo pra chegar a algum lugar. É algo que apenas caminha.

E isso proporciona felicidade.

domingo, 18 de agosto de 2013

Não há ninguém

Eu entro no quarto e um frio terrível percorre minha espinha, fazendo os pelos do meu braço se arrepiarem. Não tem ninguém. Está tudo vazio. Não tem cama ou guarda-roupa, nenhuma cadeira, nem mesmo os livros que ganhei de presente, histórias malucas que tanto pululam na minha imaginação e me fazem querer escrever mais e mais de forma doentia. Nada.
Eu estou com medo. Um medo único, nunca sentido.
E a voz que ecoa na minha cabeça me pergunta se há alguém e eu digo que não. Não tem ninguém.
Exceto por essa presença sombria como uma fumaça pairando sobre a minha cabeça.
Talvez atrás da porta se esconda um menino chorando baixinho maldizendo o nosso lar. Ou nem isso.
A fumaça não está na minha imaginação. É presença real. Ela indica o início das dificuldades e encerra o ciclo. Mas também aparece no início de outro. Há uma nova vida imaculadamente preparada para o meu delírio. E eu sinto que não posso sentar à mesa e desfrutá-la. Não ainda. Não até que eu entenda qual é essa presença macabra que ecoa como o silêncio entre essas quatro paredes cheias de histórias.
Há uma marca no chão. Isso eu posso ver. É uma mancha. Uma mancha vermelha e pegajosa.
Meu nariz está sangrando e eu partindo.
- Tem alguém aí?
Meu pai uma vez me contou uma história de um bandido que entrou em nossa casa e ficou escondido em algum lugar até que todos estivessem dormindo e ele, finalmente, pudesse nos roubar. E ele levou tanta coisa importante. Material e sentimental. E é como se ele tivesse voltado para levar as minhas coisas importantes. Ninguém acordou naquela noite, décadas atrás. Mas agora, eu estou em pé aqui, desafiando-o a sair da penumbra e me encarar de homem pra homem. Precisaria de uma coragem que não tenho, mas preciso defender minha casa.
- Tem alguém aí?
Não há ninguém no meu pensamento. É como o vazio da minha varanda. Tudo é frio quando se pensa em desistir, em voltar atrás. Quando se teme a presença maligna e distante do arrependimento. E eu acho que é isso que me incomoda tanto. Esse é o meu bandido soturno que quer levar o que mais tenho de importante.
Não tem ninguém no meu coração. Eu disse uma vez e repito. A minha necessidade de me amar vem de um lugar distante, como as histórias dos livros. Vem do passado. Vem da minha própria história errante. Nem mesmo a luz da cidade entra pela janela, pois ela me respeita acima de tudo e sabe que nada deve permanecer no meu quarto até que amanheça e eu esteja pronto para caminhar novamente. E eu choro porque a chuva de agora vai lavar as minhas rosas e a tristeza chegará ao fim. Choro na melodia de Ana, enquanto temo tudo que possa servir de luz.
Estou na contradição. Medo do escuro. Medo da claridade.
Mas há alguém aqui.
Eu sinto isso.
Então me viro para chamar alguém, para enfrentar o desconhecido com algum amigo. São escolhas que fazemos. Se você parar para pensar no "porquê" das coisas, você pode assumir muito bem as rédeas do seu destino. E quase saindo do quarto eu reparo. Não é alguém. É apenas um espelho.
Um espelho grande pendurado na porta. Eu o usava para me arrumar para as festas. Ele sobreviveu. Está aqui, brincando com a minha mente. Com a superfície gelada. Eu o toco e posso sentir a superfície gelada assim como minhas mãos e pés. Mesmo no escuro, eu sei que ele me reflete.
Então entendo.
Tem alguém aqui sim. No meu pensamento, no meu coração, no meu quarto, dormindo comigo. E não é bandido. É apenas um rapaz louco, morrendo de vontade de voltar a ficar comigo. Só nós dois.
A cama aparece repentinamente, como se tivesse saído da parede. Não preciso de amigos para enfrentarem o desconhecido comigo. O desconhecido agora é tão conhecido que posso me deitar, me cobrir feliz, cheio de cobertores para espantar o frio e dormir em paz.

terça-feira, 13 de agosto de 2013

CAOS [Final]

Eu evaporei morno e suave sobre o asfalto e debaixo do sol impiedoso de Janeiro. Não disse uma palavra sequer. Nem mesmo reclamei. Como água, minha mãe dizia. Eu subi aos céus como água, com uma música mórbida de passagem, de ida, de partida. De reticências. Quem disse que alguma coisa fica depois da sublimação? Somos todos nulos depois desse avanço. Este sou eu sem esperanças.
...
...
Ironicamente subindo, como o gás que retorna do estômago, passa pela garganta e é sonoro quando sai pela boca. Estou aberto e de costelas separadas para que minhas entranhas vejam bem o mundo do qual me escondi. Um artista qualquer me pintaria como uma releitura de Jesus Cristo na Cruz. O mestre dos mestres, minha mãe diria. Eu sou o mestre em prender a respiração por anos e me esconder atrás da desculpa mais fajuta que existe.
Não é nada.
Estou com fome.
Estou com sono.
Estou cansado.
Cansado de quê?
...
Engenhosamente, o universo me põe diante de escolhas definitivas. Como se eu pudesse, SIM, SER O DONO DO MEU DESTINO. O roteirista mal pago do meu próprio seriado. E eu estou sempre com fome e cansado e com sono e quero comer dormir e comer. E sair pela janela. Santa Tangente.
Quanta gente...
Morram comigo. Mesmo que não sejamos amigos, tampouco conhecidos. Talvez apenas amantes. Distantes. Morram comigo, tristemente. Por que temer o lamento? Por que não se dar ao luxo? E calem-se. O deserto está pegando fogo. O mar estremece debaixo de nossos pés. Fim do mundo, acreditava minha mãe. É o fim. Fim de tudo que foi, de tudo que é e de tudo que será. Como anda a solidão, dona? Já firmou seu pé no chão hoje? Depois de tantas horas... Eu me esqueço de como ser humano. Como é pensar raciocinar lógica louca.
Outrora, eu fui a sinfonia marcante da adolescência de Carrie. Que morreu suja de sangue de porco, humilhada e perdida e consciente e respirando vendo somando temendo morrendo. (...) Ela morreu?
Eu vou explodir em 3, 2, 1.
Estou aberto ao mundo do outro lado. Depois dessa linha que há entre você e eu.
É só uma linha. Você deveria ter ido me buscar no meio da rua, seu imbecil. Levantar meu corpo que evaporava sob o sol de Janeiro. Você deveria ter me dito que nada disso é real. Que o que é verdadeiro é o que vem depois disso, dessa tristeza toda. E eu não teria morrido miserável e descrente.
Onde estou não chove, não faz sol. Tudo apenas gira, sem sentido. Eu engulo a saliva com gosto de reticências e talvez esteja acordando depois de uma noite indigesta. Olho pela janela e você não está lá.
Ninguém está em lugar nenhum. Um pesadelo dentro do outro pesadelo. E a vida real acontecendo nesse meio. O meio do caminho. Depois do dia em que partirmos quero que minha sombra fique assombrando algum casarão que chamarão assombrado. Vou de encontro ao seu colo porque quero este conforto hoje à noite e porque você encostou o seu rosto na poltrona e sorriu pra mim e me roubou. Eu não serei mais violento. Chega de loucura. Não quero mesmo nenhuma resposta. Quero ficar na dúvida será que você é mesmo assim ou eu que te projeto com o filtro da minha solidão? Abandona-me, TRISTEZA! (Eu te disse isso antes e você me ouviu e depois voltou buscando meu apoio porque você está tão só quanto eu só que você suga a energia você me faz pior do que eu sou sozinho e não preciso de você aqui). E sou um boneco sem sexo, ou um anjo, caso vocês sejam católicos. E tenho o direito de escolha sobre a morte. Minha diversão transvestida de luto. Fora não há nada. Quem não está nem aí vive melhor.
Sou seu gato negro.
Depois de me vestir e fingir que está tudo bem, o que mais você quer?
Vou interromper as palavras para poder encerrar esta loucura. Minha mão morta quase me toca na boca. Ainda bem que nada pior aconteceu e tudo só foi um pesadelo.
Amanhecerá o dia e eu terei coragem. Em breve.
A lagarta relutante dentro do casulo que não morre de lutar, mas morrerá se ficar parada. Mesmo que isso custe toda a eternidade. A gente morre parado. Mas é se debatendo que nascemos para uma nova vida. Mesmo que esteja quente sob o sol e você queira perder as esperanças.
Adeus, meu caos particular que eu amo tanto. Vá fazer morada em outro. (...) Vá!

Adeus.

domingo, 28 de julho de 2013

O poema que Ella me contou [5]

Tive um tempo. Escondida debaixo da escada. Dentro do guarda-roupa. No porta-malas. Escondida. Sufocada. Mas tive um tempo para poder te escrever mais uma carta.

Elle anunciou que chegaria. Deixou tudo pronto. Preparou-me inteira, como um médico que prepara um paciente para a cirurgia. Fui preparada com precisão cirúrgica. Pois o que ele expurgaria de mim mais tarde...
Elle costumava cantar bastante, talvez tenha sido cantor numa vida passada. Ele entrou no recinto cantando sobre como não viveria como alguém que só espera um novo amor, pois, enfatizava ele, havia outras coisas no caminho pelo qual seguia. E ele sempre estava procurando. Procurava algum carro novo, alguma foto antiga, alguma lembrança reprimida de sofrimento familiar, alguém que ocupasse seus lugares... Ele se resumia em procura. Nunca em encontro. Sempre em procura.
E suas procuras, tão dispensáveis, o tinham trazido até ali. E eu o vi pela primeira vez. Claro, soube de tudo isso depois apenas. Não sustentamos olhar. Seria arriscado demais. Eu, que nunca mais seria completa, não queria nem sequer pensar na possibilidade de repousar em seu dorso. Mas era só o que eu conseguia pensar. Repousar junto dele.
Quando o conheci melhor, foi como terminar um quebra-cabeça de mais de mil peças. Dava certo. Completavam-se as peças. Como engrenagens. Como numa música de Chico Buarque. Como uma taça de vinho no frio de Julho. E eu só queria saber em qual rua a minha vida encostaria na dele. Uma promessa esquecida. Ele era uma promessa adormecida. Uma promessa quente, regada a álcool, música... Aventura.
Eu fiquei confusa por muito tempo. E confundi todo mundo ao meu redor. Até que o universo conspirou para que pudéssemos experimentar mais de perto o corpo um do outro. E foi mágico. Erótico. Eu me rendi. Pus as mãos pra cima e simplesmente me entreguei com a alma toda. Fundimo-nos num abraço apertado e o mundo parou por várias horas. E quando nos olhamos eu não sabia o que falar. Logo eu, que treinava tantas frases de efeito no espelho para quando esse momento chegasse, fiquei sem palavras. E talvez eu nunca mais voltasse a falar. Ou a amar novamente. Pois estava embriagada por aqueles olhos de James Dean. E ele emudeceu também diante de mim. Ficamos mudos, contemplando a promessa gritante refletida no olhar do outro.
Estivemos juntos por um bom tempo depois daquilo.
Hora de testar a fortaleza tão minuciosa que eu tinha erguido diante de mim.
Bom, o fracasso foi épico. De nada adiantaram minhas defesas. Eu voltei a ser menina. Adolescente. Passional. Fui adoecendo. Querendo demais. Esperando demais. Com tanta urgência que ficava sem ar só de olhar no espelho. De tirar uma foto. De viver mais. Eu não cabia em mim. E por quê? O que ele fazia de tão especial? Por que era homem? Ou por que era incompleto? Não havia nada de diferente nele! Nada!
Ele nem ao menos estava comigo. Estava. Mas não estava.
Coitado, ele tentava.
Mas não estava.
Agora, enquanto escrevo pra você, eu sinto pena de todo aquele sofrimento dele. De toda aquela incompletude que ele vivia. Ele nunca me fez mal. Ele apenas tentava. Eu que fazia mal a mim mesmo. E tudo que ele fez foi pouco, porque eu estava apavorada. Ele me transformou nesse monstro devorador, abusivo, um monstro enlouquecido, egoísta. Eu o cercava no escuro, o pressionava no escuro. Queria respostas. Queria promessas. Que nunca vieram. Não viriam mesmo. Ele me dilacerou. Ele deixou todas minhas vísceras expostas na mesa, no chão, na praça. Ele me virou do avesso. Eu me perdi completamente naqueles meses. E só porque não o alcançava. Não o resgatava. Não importava o que fizesse.
Sabe? Há algumas pessoas que são quebradas. Elle era quebrado. Eu pude ver de perto como é uma pessoa dessas e é horrível. A vida se perdendo e escorrendo dos olhos, que sempre estão distantes. É muito triste de se ver. E foi o amor que o deixou assim. A promessa dolorosa e incompreensível, que desafia a inteligência e nos coloca diante de Deus e do Diabo. O amor que também não permaneceu ao seu lado, que também o destruiu, o consumiu e sumiu. E ele nunca mais se ergueria de novo.
O amor.
Não sei que nome dar. O amor que eu senti por ele me destruiu por inteira. Quando ele partiu correndo sem olhar pra trás, eu estava em cacos pela rua íngreme. Ninguém me juntou. Não quis que ninguém me tocasse. Eu mesma me recompus. E evoluí. E aprendi. Tive ódio depois. Por muito tempo cultivei demônios como numa plantação, num beiral de janela enfeitando meus olhos e tudo que eu via. Mas evoluí. Compreendo-o como uma mãe agora. Mas, mais do que isso. Foi ele quem me ensinou que eu sou muito mais importante do que qualquer relação que eu terei na vida. Mesmo assim, sinto que algo ele quebrou em mim também. Desde que ele se foi, há algo que nunca mais voltou. Não sei dizer o que é.
Foi ele que me deu a ideia de escrever cartas.
Sinto saudade de sua presença na madrugada. Sempre quando é madrugada. Sempre quando eu tenho fome. Sempre quando alguém canta algo que ele cantava. Sempre quando penso em me render. Em erguer os braços e me entregar. Quando bebo uísque. Quando tenho vontade, mas tenho medo. Quando sou imatura. Quando sou criança. Quando sou adulta. Quando sofro.
Mas nunca sei disso.
Quando tudo se findou, ele dizia que o que tínhamos era real.

Nunca saberei essa resposta.
Eu não sei o que sentir. Talvez essa seja a conclusão dessa carta. O desfecho dessa história mal contada que ainda tem pontas soltas. Sei que ele me fez crescer.

Só isso.

domingo, 21 de julho de 2013

Nada a ver essa perdição toda

Perdimento.
Que me faço pequeno e diminuto dentro deste casulo que não permite nem a passagem do ar, proíbe a circulação da vida, a aprisiona, fazendo tudo se comprimir numa vida encaminhada para dentro.
Que sonho é esse que, de repente, abre um rombo dolorido nas paredes finas e resistentes desse asilo? Escoam as frases feitas, inúmeras ofensas, sentenças cruéis que servem de subterfúgio para meus pesares e abrem espaço para a luz... Como não poderia ter medo?
Como poderia deixar de temer a luz? A possibilidade de mudança... De melhora? Quando tudo que é mais confortável permanece inerte no escuro...
Que sorriso é esse, meu Deus?
Uma baforada de ar no meu rosto e um caminho todo pela frente. Eu me abraço te abraçando. Quero te beijar para beijar a mim mesmo, que não me encontro há tanto tempo... Quero ser de ti, para ti, para que, então, eu seja meu e possa sobreviver da condenação que me imponho com dentes à mostra.
Eu sou de tudo um pouco, menos caminho. Menos resposta. Nada que comece de novo. Apenas visualizo meias possibilidades através do alto do meu mirante. Acompanho a luz que guia os piratas de volta para casa, mas não vou com eles. Não tenho tesouro. Nunca vi tesouro escondido que valha à pena.
Os maiores tesouros estão à mostra.
Eu estou escondido. Com tubos umbilicais me nutrindo de poucos prazeres. Nutrindo com vícios. Carinho. Miserável carinho vicioso. Se me parissem... Um natimorto.
Mas aquele rombo que tu abriste na fina película que me isola do cosmo é como um sopro de vida lispectoriano que me cria novamente enquanto vou te tocando os cabelos, amarrando um abraço apertado que, na realidade, é o meu encontro comigo mesmo.
Você é uma promessa muda. A sugestão da mais remota possibilidade.
É a salvação.

Just say the word.

segunda-feira, 20 de maio de 2013

O poema que Ella me contou [4]


Sabe,
Dor que me modela.
Encanta-me visualizada no espelho.
Refletida em tudo que brilha.
Dor.
Crescimento zero. Pausa no tempo.
START.

Egoísta que sou para tomar seu tempo e ficar te enviando estas cartas com minhas histórias que não te acrescentam nada e que não promovem uma reflexão crítica sobre o mundo nem nos fará heróis salvadores da pátria...
Mas você ficou parado naquele banco de praça e me ouviu pela primeira vez. Como um médico numa cirurgia, você retirou o câncer de mim e me fez falar. Fez eu abrir meu peito para o mundo, minhas vísceras rolando na grama e eu desatando a falar e chorar e a tremer e não querer mais nada... Até que eu sufocasse com alguma vírgula e pedisse água e continuasse chorando porque não supero, porque não cresço, porque tenho medo, porque sou sozinha porque quero... E eu já não sei mais de nada.
Sou um poliedro e em cada uma de minhas faces está estampada a história que tive com um deles.
Sabe o que eu quero?
Eu quero um Elle totalmente novo. Virgem, jovem, inocente e que não tenha vivido nada, que não tenha passado que ameace irromper sem aviso de algum baú no fundo do guarda-roupa. Quero um Elle que ainda acredite, que ainda possa se sufocar com o coração acelerado ao dobrar a esquina e me ver. Que aprenda na teoria, sem precisar sofrer com a prática e que possa, genuinamente, preencher os vazios de minha alma.

Eu ainda tenho mais coisa pra contar.
Espero que tenha paciência.
Mas, agora não dá.
Elle está chegando...

segunda-feira, 8 de abril de 2013

É tão engraçado,


eu acho que sempre terei esses olhos desfocados de quem viaja no tempo mentalmente. Esse ar de bobo estampado na cara será meu cartão postal até quando eu tiver 80 anos. E o meu pescoço, então? Dolorido para sempre de tanto virar para trás e encarar as lembranças em preto e branco de uma vida que foi tão minha e está tão distante que parece ter sido em outra encarnação.
Talvez eu cheire pra sempre aquele mesmo perfume baratinho ganhado no Natal de 2000 e alguma coisa. E talvez eu tropece e caia nos mesmos degraus, seja o mesmo gordinho, nerd, tímido, feio e precoce de outrora. Aquele gordinho pela primeira vez apaixonado, pela primeira vez provando a sexualidade, devorando Harry Potter e fazendo amigos de uma vida inteira. Em algum lugar, eu serei sempre esse mesmo menino.
Eu terei para sempre esse olhar distante, que você pode confundir com tristeza. E até mesmo será tristeza, uma vez ou outra. Mas não é tristeza permanente. Esse olhar distante é a minha saudade, minha companheira, quase minha esposa, pois ainda não a aceitei como definitiva aliança até o fim dos meus dias. É a minha saudade pulsante, violentamente silenciosa, dilaceradora, enriquecedora. É minha dor. E minha alegria. Minha saudade, formadora, em partes, do que sou. É minha escola, com seu piso vermelho e paredes descascadas. É minha rua de infância, íngreme, vazia, curta. É minha praça cheia de folhas e terra e árvores, meus lanches preferidos, meu pastel da tia Nena, minha bicicleta light, meu pão da vó, minha missa aos domingos...
É minha dor de ter crescido com uma solidão inconsolável no meio de tanta gente. Minha saudade é minha dor de crescimento tão silenciosa. Virando a esquina, passando em frente das casas apenas para ver as pessoas, dando voltas e voltas nas mesmas ruas batendo papo, já começando a viciar em seriados, e já tendo problemas com as palavras.
Em algum lugar, eu sempre vou ser aquele mesmo menino que nunca usava chinelo na escola, que ia bem nas provas, que ia a missa todos os domingos, vulnerável, ansioso, apaixonado e sem medo, que adorava música e que queria ser artista. Por mais que eu cresça, veja coisas terríveis e maravilhosas, que um universo inteiro exploda diante de meus olhos e eu seja queimado pelas palavras mais cruéis de qualquer pessoa, em algum lugar, eu sempre vou estar lá, no banco da escola, cantando:
“Me dá sua mão como se fosse a primeira vez. Como se fosse nosso primeiro banho de chuva. Como se a estrada não fizesse nenhuma curva. Liga pra mim e diz que tem saudade da nossa solidão”.
Sou triste assim hoje.
Serei triste assim para sempre.
Mas muito agradecido por tudo.
Saudoso e rico de espírito, incapaz de esquecer, incapaz de saber crescer e deixar o passado para trás e que já não chora,
eu.

quinta-feira, 4 de abril de 2013

Educação


Hoje, paro um instante para propor uma reflexão que escrevo ainda em comunhão com meu Eu Lírico.
Estamos vivendo dias confusos, em que os valores se invertem e se perde a noção de prioridade. Cercados de intolerância e, num paradoxo inusitado, pela indiferença. Somos reféns do medo, da imprudência, traumatizados pela violência, pela falta de orientação.
E eu me obrigo a crer na pedra fundamental para a evolução: a educação.
Com uma boa educação, desde cedo, banhamos a criança na luz e a tiramos dessa vida medíocre de senso comum.
Com pais e professores com boa formação, não apenas de matéria como disciplina, mas com formação empática de mundo, podemos instruir crianças que se tornarão grandes seres humanos, atenciosos com o próximo e com o meio ambiente, tolerantes, abertos ao novo e que não se conformam com o que está errado e prejudica os outros.
Com a educação, podemos evitar tantos males pequenos e, todos juntos, evitamos uma guerra. Com a educação, nós todos vamos nos incomodar no sofá e vamos nos levantar para derrubar os corruptos e os fanáticos. Poderemos até dar as mãos e compreender que vivemos num mundo de todos que existe para todos e, finalmente, deixar de lado as irritantes discussões de classe, gênero, sexualidade, religião...
Poderemos compreender que EU CRISTÃO pode ser melhor amigo do EU ATEU, sem ninguém impor nada a ninguém. Assim como o EU NEGRO e o EU BRANCO. Ou o EU HÉTERO e o EU GAY. EU RICO e EU POBRE.
Evitaremos também as mortes no trânsito.
Um exercício muito bom é visitar uma família carente ou um asilo. Com a educação, seremos gratos por aquilo que temos e corajosos para adquirir o que ainda não temos.
Sem puxar o tapete de ninguém.
Há espaço para todos no planeta.
E essa educação tem que começar cedo, em casa. Se você não tem orientação suficiente, não tenha filhos. Vá se educar e depois pense em educar outro ser humano.
Não é tarefa fácil. Precisa-se de muita humildade.
Mas talvez seja o segredo tão óbvio para a nossa salvação.

terça-feira, 2 de abril de 2013

O poema que Ella me contou [3]


Preciso dedicar esta carta a outro muito especial que esqueci de mencionar anteriormente.
Talvez porque eu esteja esquecendo facilmente das coisas hoje em dia.
Éramos irmãos pássaros. Digo isso porque conhecemos a liberdade juntos. Claro que era apenas um convívio cercado de incertezas e despreocupação, talvez tenha sido uma prévia do que poderíamos conquistar depois. Sem poetizar nada, aquilo era apenas vida.
Eu não o vejo há muito tempo.
Mas é engraçado como as coisas terminam...
Eu o deixei. Ele ficou me esperando debaixo da chuva, no meio da rua, ensopado e desolado. Eu me diverti tanto com ele e sabia que tudo tinha sido apenas isso, logo, jamais pensei que poderia voltar. Eu tinha recebido uma oferta de vida melhor e fui.
Ele me esperou por muito tempo.
Pegou gripe e se curou muitas vezes debaixo daquela chuva.
Não sei por que, mas ele é o único de quem gostaria de ter uma lembrança palpável, um suvenir com seu cheiro.
A madrugada me lembra dele e eu incorporo certo espírito jovem e audacioso todas as vezes que me lembro das nossas escapulidas.
Ele foi meu e eu dele. Naquela brincadeira, não fizemos planos. Quem faz planos nessa idade?
Ele.
Ele fez planos.
Mas eu nunca soube.
Ele nunca me disse.
Ele dizia pouco. Tinha a sensibilidade apurada para me ouvir falar por horas a fio e não me interromper. Virtude que seria extremamente saudável pra mim hoje. Mas isso o impediu de compartilhar comigo o que ele tanto queria.
Isso soa tanto como algo que EU teria feito por outras pessoas...
Teria sido ele um prólogo do que eu me tornaria? Digo, depois de aprender um pouco de decência e empatia para com meus companheiros?
O fato é que eu nunca soube seus sonhos, seus planos, seus desejos. Estava ocupada, curiosa, beijando-lhe o rosto e desejando congelar o tempo.
Então, quando eu parti, ele optou por emudecer completamente. Voltei uma vez, não por ele, mas ele me procurou em silêncio, querendo que eu lesse as entrelinhas entre uma piscada e outra, entre um suspiro e outro. Eu, analfabeta de sentimentos, não percebi nada.
Ah, meu Deus... Tanto que eu tinha que aprender...
Soube de muita coisa depois. Coisas que me enchem os olhos de lágrimas. Coisas que ele falava sobre mim, queria ter comigo, sonhava para nós dois... Coisas que parecem que foram ditas por mim. Sentimentos que parecem muito com os meus. Angústias, infelicidades, o desespero por ter que lidar com a minha distância...
Eu sei que não teria feito diferença se ele tivesse me dito naquela época. Eu era analfabeta, como já disse antes. E insensível. Eu era jovem.
Soube recentemente que ele teve um destino parecido com o meu. E que não andamos muito bem. Se ele lesse as cartas que escrevo pra você, talvez ele também confundisse meus sentimentos como sendo os seus. Éramos tão parecidos. Não consigo não sorrir e não sentir sua falta.

sábado, 23 de março de 2013

O poema que Ella me contou [2]

Eu me sentia plena.
Eu me estendia pela flora, era a natureza. Era a mãe do planeta.
Eu sentia que poderia ter tudo.
Nós nos conhecíamos desde sempre. Desde berço. Destinados.
Talvez eu tivesse olhado para ele ao me visitar ainda pequeno e talvez eu tenha agarrado sua mão bem forte e dado uma mordida para que ele se lembrasse pra sempre. E ficaria aquela cicatriz que era eu. Como a que ele, anos depois, deixou em mim.
Falo de outro Elle.
Esse foi o pioneiro, desbravador inesquecível dos cantos mais remotos do meu coração. Apareceu menino, um prelúdio para o homem que eu pensei que seria. E que talvez ainda acabe se tornando. Apesar de não ser esse homem agora.
Mostrou-me uma coisa que dificilmente se repetiu depois: segurança. Ele me amarrou como numa brincadeira de índios e me protegeu. Prensou-me na parede e disse me compreender de uma forma que nem eu mesmo compreendia.
Eu provei pela primeira vez a fantasia.
E fui vítima da imaginação.
Vivemos anos laçando desejos e os realizando na ponta da caneta mágica. Eu ria da realidade com um desdém macabro e altamente contagioso. Virei uma lagarta num casulo que não evoluía.
Será que ele mesmo sabia?
Será que ele sabia de todo esse universo paralelo? Porque, às vezes, ele parecia cruzar a linha junto comigo para ser um observador mais que curioso da realidade fantástica da minha cabeça.
Quando, porém, ele percebeu estar comprometido demais com essa (des)ilusão, ele partiu. Partiu porque tudo aquilo era uma ameaça. Partiu de tudo. Deu adeus, inclusive, a si mesmo. Deixou sua tribo arrancar seus olhos e partiu. Estava decidido.
E não se tornou aquele ser humano incrível que prometia tanto ser.
Foi ser ovelha burra.
Eu escrevi uma carta e entreguei a ele anos atrás.
“Não te olharei mais. Não te cumprimentarei mais. Porque me lembrar de você dói. Porque cheirar você dói. Porque rir de novo dói. Portanto, quero que vá mesmo. Eu estou escolhendo isso. Eu te deixei ir. Saiba que, se eu ainda quisesse, você seria meu”.
Mas ele nunca leu. Como leria se já estava cego?
O reino encantando se desfez há muito tempo, como um castelo de areia levado pelo mar. Não estou mais na flora toda. Eu nunca mais tive tudo.

quinta-feira, 21 de março de 2013

O poema que Ella me contou [1]


Eu fui até ele.
Abri os braços e, simplesmente, me rendi.
Disse:


“Estou muito grata por você ter entrado em minha vida. Num dia épico, divisor de águas. Ter sido a cadeira ocupada mais distante de mim. E por não ter dado liberdade de aproximação logo de início. E por me fazer acreditar que você não era uma pessoa agradável, tolerante, que passasse longe de ser especial. Tudo para que eu pudesse desmistificá-lo depois.
Grata por você nunca abrir a boca pra puxar conversa, por jogar esse jogo da curiosidade comigo e por se desdobrar em sorrisos inexplicavelmente cativantes e imprevisíveis a manhã toda.
Obrigada por não ter feito diferença nenhuma no começo.
E ter sido essencial nesse final.
Sabia que eu vivo descontente com a humanidade? Perdendo e recuperando minha fé como se estivesse experimentando roupas...
E sabia que você me fez acreditar um pouquinho mais nas pessoas? Só por ser a exceção da regra. Eu adoro as pessoas que são a exceção da regra. Parece que você vai caminhando e ensinando, sem compromisso algum, a sermos pessoas melhores.
Obrigada por me deixar compreender um pouquinho de sua história.
Obrigada pelo cheiro, pelos bombons, indicações de filmes, risadas, goles de cerveja, de vodka, pelos momentos inexplicáveis, pelas minhas dúvidas sobre você e pelas minhas certezas sobre você,
Por ser diferente, por ser único, pela animação, pela despreocupação, por ser algo que nem sei dizer, por me fazer perder o fôlego, o tempo, por me fazer morrer te esperando, me distrair, me fazer ser boba com as palavras e me perder ao escrever e não sei mais o que dizer.
Grata por você nunca ter feito nada e, pela primeira vez, eu ter entendido que me apaixonei por alguém que não fez nada, que não é inventado, que simplesmente foi tudo aquilo que é.
Por me fazer perceber que ainda há amor em mim.
Eu vou sentir tanto a sua falta. Sem lágrimas. Vai ser um sentimento bom, assim, pra sempre.”


Afastei-me daquele abraço que, na realidade, foi mudo. Porque eu não conseguiria dizer tudo isso. Vou levar as palavras que eu não disse pra casa e dormir com elas. Talvez amanhã elas amanheçam mortas.
E nos despedimos, sem beijinho no rosto pra não ser tão inconveniente. Ele resmungou alguma coisa como “tchau” e usou um adjetivo nada bonito pra me descrever. Eu ri.
Ele virou a esquina e eu ainda sorria.
Os anos se passaram e eu ainda sorria.
E enquanto escrevo esse poema, estou sorrindo.
Sem dores ou pesadelos.

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

XV minutos


Enquanto passo pela estrada a caminho de sei-lá-o-quê, passa, na contramão, um bocado de gente perdida e aflita. Como se não houvesse o tempo em seu destino final. Apenas uma reprovação.
Não há dinheiro suficiente que nos abasteça de felicidade.
Enquanto faço meu caminho até não-sei-onde, perco-me na relação dentro e fora dessa cidade que saboreia as quatro estações num só dia. Os prédios, comércios e praças que se erguem provocam o transeunte, que se deixa levar pela visão, caindo em armadilhas capitalistas ou, talvez, salvando sua vida, brincando com seu dia. Como o artista que se contorce diante de uma obra-prima que o inspira a compor. Um ciclo artístico. A vida acontece em métricas poéticas, sendo essa a única revolução humana contra a realidade fria da existência.
Os bancos imponentes são os soberanos enfeitados do Natal. E todo comércio se faz discípulo, prestando favores ao deus da moeda. Inúmeras são as reverências e referências. Há uma rebelião aqui ou ali, mas, poucos são os que se interessam.
Talvez a vida aconteça aqui apesar disso tudo. Talvez ela passe despercebida no meio dos prédios. Esteja pisoteada na calçada. Esteja no vento frio que levanta os cabelos dos moradores e turistas e nas suas caras fechadas, de poucos Bom dia! e dolorosas desculpas fajutas. Aliás, a vida sempre é facilmente localizada no silêncio interior que a cidade grande proporciona. E a vida explodiu tão furiosa diante dos meus olhos hoje que, ao andar por aquela rua, senti uma tontura de quem experimenta alguma substância alucinógena. E, de repente, parece que nasci de novo, já velho e agradecido por suportar os dias de cão que come o pão que o Diabo amassou.
E vejo minha própria vida que se encantou por aquela rua muitos anos atrás. E me lembro de que também desenhei um sol amarelo e um castelo que descoloriu. Mas, ainda assim, a vida conduz meus passos com uma ingenuidade de menino. Então, sou eu que não percebo?
- Hei, vocês! Nós que não vemos? – grito e não sou ouvido.
Sorrio, apesar disso. Porque sei que, no fundo, em algum dia da semana, alguém também será tocado por essa magia e se sentirá vivo e, depois de respirar fundo, tomará novo impulso para mais um ciclo inteiro de dificuldades. Sorrio porque chegarei em casa e escreverei sobre isso. Sorrio porque o futuro é meu e meus sonhos se tornarão reais. Amanhã eu volto ao trabalho.
XV minutos de um não-Novembro mais que feliz.