terça-feira, 27 de maio de 2014

Olhos fechados

Marcelo, de olhos fechados, viu suas sacolas de compras voarem por cima do asfalto gelado e caírem com um baque surdo na grama ao lado da rua. Esqueceu, por um instante, que havia um romance inteiro atrás de seus olhos fechados.
De olhos fechados, então, viu Ivone correr ao seu encontro, gritando aflita enquanto clamava por socorro. Outros a seguiram. A placa nunca fora anotada.
Tocaram suas costas, mas não moveram seu corpo. Um filete de sangue escorria do canto esquerdo de sua boca enquanto suas mãos e testa abriam-se em poças negras. No mesmo instante, um garoa fina anunciou o início de uma vida tempestuosa.
Sentiu-se esquecido, apesar de toda atenção.
Viu a nuca de Sofia.
Os cabelos castanhos descendo pouco abaixo do ombro, a boca magneticamente presa ao outro que não era ele. Dois pares de olhos fechados que nunca se desgrudariam, por mais que ele estivesse estendido ali no chão, o rosto trincando de frio no asfalto gelado.
Muita dor.
De olhos fechados, viu que o reflexo de luzes vermelhas giravam e não produziam som. Nada produzia som. O mundo em silêncio o fazia lembrar que antes havia uma canção que falava sobre uma noite inesquecível que tivera com Sofia. A única que tiveram e que se perdera no tempo, no medo, na inconstância. Na brincadeira.
- Você consegue me ouvir?
Alguém perguntou e ele lançou um olhar perdido, ainda de olhos fechados.
Na sacola verde em cima da grama molhada havia um presente para Sofia. Um livro. O preferido dela. Ela comemoraria o aniversário no dia seguinte. Ele precisava entregar o presente e dizer que aquela distância que ele criara de nada serviu. Ainda pensava compulsivamente nela, o que o levava a exaustão. Ele tinha um muro para derrubar e precisava estar em pé no dia seguinte.
Sua boca se mexeu, contudo não teve muita certeza se conseguiu pronunciar seu nome. Marcelo. O rapaz de olhos fechados. Que vivia no escuro, vendo somente aquilo que gostaria de ver.
Passou por um bisturi. Outros aparelhos estranhos. Viu máscaras, roupas azuis, uma luz bem forte cegando seus olhos fechados.
Viu uma luz bem forte no fim do túnel.
Viu-se interrompendo o caminho de Sofia. Ela estampava um semblante amargo. Ela ergueu o rosto, em pé no penúltimo degrau e ele chorou. As lágrimas se atropelavam para sair através de seus olhos fechados.
- Isso tudo é pior do que não estar com você. - ele disse.
Ela não entendeu na hora.
Mas se abraçaram.
Marcelo passou a mão em seus cabelos castanhos, aproximou-se cautelosamente e a beijou na boca. Meses depois, era o beijo que ele esperava para poder abrir os olhos em paz. Mas o fez de olhos fechados.
Ninguém recuperou a sacola com o livro preferido de Sofia. A bochecha de Marcelo estava em carne viva e parecia ser a parte de seu corpo que mais doía. Passou por um bisturi, outros aparelhos estranhos que provocavam ondas vermelhas/verdes numa tela, máscaras, roupas azuis, termos incompreensíveis, uma luz forte cegando seus olhos...
Sofia estava do lado de fora esperando, junto com outras pessoas bem mais importantes que ela, para saber notícias daquele que lhe não dirigia a palavra há mais de um mês. Ela não se lembrava da última palavra que ele lhe dissera. Parecia tanto como um "tchau".
No topo da escada, Marcelo e Sofia riram de todas as voltas que o mundo dá. Lembraram-se do esquecimento, da cumplicidade, riram juntos e se beijaram outras vezes. Marcelo explicou categoricamente os motivos para amá-la e ela sentiu-se especial pela primeira vez na vida. Era isso que esperava.
- Ele tem algo para me dizer. - ela comentou do lado de fora, com as outras pessoas mais importantes do que ela.
Ficaria tudo para uma outra oportunidade.
Marcelo achou que estava tudo perfeito, mão entrelaçadas com seu amor caminhando por um corredor estreito e mal iluminado, indo trabalhar. O sorriso dela era tímido, mas era completo.
Quando sentiu a plenitude, abriu os olhos. O que não viu depois foi a confirmação de que deveria ter falado antes tudo o que sonhara na mesa de cirurgia.
Marcelo ecoou por alguns segundos. Um eco triste e que se perdeu na infinidade da vida. Sofia recebeu o livro preferido de presente do seu namorado e nem soube daquele que estava esquecido na grama molhada. Ela engoliu em seco, pois sabia que havia algo que Marcelo não havia lhe dito. Então, com um peso gigantesco na alma, fechou seus olhos e passou a viver assim...