terça-feira, 8 de outubro de 2013

O poema que Ella me contou [6]

O hoje é um fim.
Determinante fim. Inexplicável fim. Inevitável fim. Eu e Elle. Fim.
Quando eu sarar, talvez eu ria disso tudo. Fui paciente e paciente agora sou dessa minha doença rara.
Quando nossas peles se aproximaram, os lábios vieram juntos como que por acaso, uma mão na nuca dElle e uma na minha nuca, mãos imaginárias nos empurrando para o precipício só pra ver o que viria depois do salto. Quando a gente se tocou mais pra baixo não foi acaso. Demos um nome ao que veio em seguida, porque tomamos as rédeas do desejo: chamamos de destino.

O destino nos uniu. Algo maior. Projeto inexplicável das probabilidades absurdas que permeiam a vida. Vamos mergulhar mais fundo só pra ver o que vai dar?
O que começou confuso se tornou família.
Eu ganhei uma família com Elle. Filhos. Netos. Bisnetos. Tios. Avós. Pai, mãe. Até mesmo irmãos. Vínculos reais e sinceros. Laços frágeis que se fortaleceram no tempo e nas intempéries.
O que eu posso dizer de um fim inevitável, por tanto tempo adiado, que eu não queria que acontecesse?

Por muito tempo, inimigos da eutanásia.
E foi num último suspiro por entre lágrimas e gritos e desespero e medo que eu desliguei os aparelhos.

Elle ainda é tudo.
Muito maior do que tudo que você já leu. Faz os outros poemas que te mandei virarem pó. Serem apenas poesia. O que eu quero dizer com esta carta é que eu vivi uma vida inteira dentro da minha vida.

Vivo absorta em pensamentos de nossos momentos. Ainda posso tocá-los, cheirá-los, me aquecer neles, dormir com eles.
Tivemos uma casa modesta, com um cachorro, uma flor na varanda, um carro, uma piscina, uma biblioteca cheia de romances e uma estante repleta de filmes. Casamos no começo de Março sob uma garoa fina, sentindo o calor subindo do asfalto. Nos casamos num palco. Escondidos. Elle dormia no meu peito para que eu o protegesse de tudo aquilo que ele tinha medo e eu o segurava para que não fugisse. Como se ele fosse capaz de fugir. Ele nunca fugiu.
Eu fugi uma vez. Mas voltei.

Travamos uma guerra terrível por muito tempo. Fizemos as pazes e continuamos em guerra. Viver com Elle parecia uma luta interminável, como passar o dia remando e, na hora de dormir, ter que remar mais pra chegar em lugar nenhum. Num certo dia, senti falta de propósito. Fui dormir com uma pulga atrás da orelha. E estava certa.

Mas não quero me prender aos pontos negativos. Eu só queria compartilhar com você que eu acreditei em algo real, por mais incrível que possa parecer, já que você agora me conhece tão bem. Mais que isso! Vivi algo real. Tenho fotos pra te mostrar. Posso te enviar, se você quiser.

O que eu vou fazer agora com nossos filhos, depois de tantos anos? Eles não ficarão comigo, porque eu não paro. Não ficarão com Elle, porque elle não leva jeito. Ficarão soltos? Posso deixá-los dormindo no quarto, trancados, em sono profundo e sem sonhos enquanto esperam seus pais ficarem prontos para resgatá-los. 
Eu acho que será bem assim. Nós ficaremos prontos e voltaremos. Bom... Talvez, não sei.
O que eu to falando?
Não voltaremos. Aquelas risadas na madrugada não voltarão mais. O amor feito embaixo das cobertas naquele quarto pequeno ou as mãos que se uniam na hora da refeição ou mesmo o abraço aperto a cada despedida e a cada chegada... Essas coisas especiais... Foram embora. Foram embora com o respeito tão árduo de se encontrar, com a intimidade acolhedora... Com nossas cartas, nossas canções que falavam de olhos, de carvão...
Quando elle sorria eu via um Elle inocente. Que ninguém nunca verá. Esse Elle é um lado dElle que ninguém mais conhecerá. Uma face só minha. Que só se revela sob o meu olhar atencioso.

Acho que aguardarei, sem chorar, enquanto me declaro para sempre fiel a elle. Fiel ao nosso amor, as nossas escapadas, as nossas guerras travadas, as nossas viagens, aos nossos abraços, aos nossos hábitos... Serei para sempre fiel, mesmo que eu esteja sozinha.
Quando você for dormir, não chore. Não especule meus sonhos. Eles são meus. Meus e dElle. Eu não vou dormir ainda. Não hoje, nem amanhã. Ficarei de vigia. Orando. Esperando algo que não sei o que é. Sentindo falta de algo que não sei o que é. Sendo fiel.

Passado e futuro se confundem enquanto escrevo. Como se eu ainda esperasse.
Você já sabe de todos agora. Eu voltarei a te escrever quando houver algo sobre um novo Elle pra te contar. Por enquanto, apenas o silêncio.

Eu o amei de verdade, sabe?
Muito.