terça-feira, 27 de janeiro de 2015

No meio

Prelúdio para "O Diabo na Estrada".



Uma notícia ruim é como um câncer.
Tudo que toca, destrói.
Um pedaço de papel, sulfite, A4, e aquela confirmação em negrito, itálico, sublinhada, exaltada, gritando para todas as paredes. Não, não é câncer.
Mas é como se fosse.
Laura coloca os vários papeis em cima da cama e fica olhando pra eles durante vários minutos. Ou segundos? Talvez fossem horas... Ela escuta buzinas, alarmes de carros, sirenes de ambulâncias, gritos, risadas... Durante a tarde, o bairro é bem tranqüilo, pode-se ouvir os ambulantes vendendo suas bugigangas com naturalidade e os pedestres criando conflitos com motoristas. Mas nada sai do ordinário. Ela que se desloca da realidade com uma rapidez que se aproxima à velocidade da luz.
“Eu sou a morte!” – grita o papel em seu colo.
A última página foi a definitiva. De resto, tudo normal.
Laura que não chorava há alguns anos, pois decidiu ser mulher forte. Laura que não se angustiava por nada, tomava seus ansiolíticos com regularidade, pintava quadros, já que não dançava mais, apenas para expor a gravidade de seus sentimentos impróprios. Justamente ela! Culpada de ser quem é. Culpada pelo resto da vida. Agora, ali, olhando para aquele papel, sentia-se uma criança diante da expulsão da escola. Como contar aos pais?

O tempo, imóvel naquele quarto, se desdobrava em pensamentos para Laura. Conheceria Veneza, das histórias românticas? Veria o Coliseu, dos bravos gladiadores? Ou a pop Nova York e seus teatros belíssimos? Veria o sol amanhã? Veria o próprio rosto no espelho? O próprio rosto no espelho não a reconheceria, então, melhor não! Decisões mais sábias daqui pra frente.
Duas batidas na porta.
Ela, de sobressalto, exclama um “entra!” e continua vidrada no papel que definiria sua existência pelos próximos anos.
- Eu vim procurar meu irmão.
Barba rala, esse pobre coitado. Nunca conseguiu crescer uma barba descente. Não deve nem ter pelo na bunda. Simas, o cabeça baixa, o sorridente, porém, inacabado ser humano, esse, cuja presença ninguém se detém falando muito pra não deprimir os outros, entra no quarto, afoito, contido também, numa mistura de querer e não poder que só ele sabe fazer. Esse mesmo ser humano desprezível entra no quarto.
- Cadê o Amir?

- Você ta vendo ele aqui? – tratá-lo com rispidez faz Laura sentir-se bem.
- Não, não. – ele parece confuso, desligado. – É que eu precisava mesmo falar com ele.
- Pode falar pra mim. Eu sou a mulher dele. – Laura se levanta, impõe-se, parece uma fênix.
- Você sabe pra onde ele foi? – Simas questiona com um desespero latente. – Onde ele está agora?
- Ele saiu comprar umas coisas. – ela não fazia a menor idéia. Aliás, boa pergunta, onde estaria Amir agora? – Fale pra mim, seja lá o que for.

- Bom, você sabe que né... Ele foi me entregar, Laura!
Os olhos de Simas brilhavam com algo que pareciam lágrimas. Mas não, talvez fosse apenas o reflexo da lua cheia.
- Você mereceu! – concordou ela.
- Eu jamais mentiria pra você. Você é mulher do meu irmão! Você o tocou! Você fez sexo com ele... Você... Você se deita com ele, sente o corpo dele... Eu não mentiria pra você.
Simas estava muito desconfortável ao falar isso. E até meio violento. Mas lançava um olhar de desejo a Laura. Um olhar que ela não revidou, mas também não ignorou.
- Eu vim aqui pra pedir pra ele não fazer isso! – ele exclamou, com a voz fina de alguém desesperado.
Ok. Foda-se. Quando se está morrendo, apenas se morre. Alguém tem culpa e quando a culpa é nossa, é preferível colocá-la em outra pessoa. Melhor que o mundo acabe em sexo e morte do que em dor! No desespero de beber da água da vida, a gente acha subsídios em qualquer órgão genital.
- Você me parece cansado. Venha aqui. Eu te ofereço conforto.
Quando temos a morte ao nosso lado, a gente a oferece. Tocamos tudo com a nossa morte. Talvez, na esperança de trocá-la por vida.
Simas avançou com um desejo selvagem e agarrou o seio de Laura. A camisola que ela usava foi facilmente rasgada. Ambos sabiam que nada disso estava correto, mas eles nunca haviam seguido a regra. Então, estava tudo bem.
- Você ta com o cheiro dele.
Ela teve que empurrar o rosto dele para longe.
- Do Amir?

- Sim. – ele sorria, refestelado de prazer. – Sim, o cheiro dele.
- Isso é bom?            
- Não sei. Mas vamos continuar.
Ela teve um flash de lembrança. Amir e ela. Marido e mulher. Promessas para sempre. Talvez não estivesse certo quando ele tocou a coxa dela.
- É melhor parar. – ela pediu, mas sem muita convicção.
Ele não parou. Tocou os seios dela com as mãos cheias de desejo.
- Vá com a boca. – ela pediu, já entregue.
Eles fizeram o sexo que tinham pra fazer e depois foi só isso. Ele saiu envergonhado do quarto, não terminou de se defender. Ela não se cobriu de vergonha, como de costume, hábito idiota, já que nunca sentira vergonha depois de um sexo casual, mas gostava de manter certa pose politicamente correta, segundo ela.
- Me leve pra longe, Simas! Me tire daqui! – foi o que ela disse na hora do orgasmo.
- Não fale pro meu irmão sobre isso! – ele pediu depois do orgasmo dele, com resquícios de lágrimas no rosto.
- Jamais. – ela confirmou, sorrindo, maldosa, rindo da falta de cuidado de Simas.
- Eu o amo. – e ele falava muito sério, ela sentiu.
Um gosto amargo apareceu na língua de Laura minutos depois. Irmão versus irmão. Que indelicadeza se meter nisso.
Diante da morte, Laura adormeceu, temerosa, talvez ele tivesse plantado a semente da mentira em seu ventre e isso crescesse numa criança doente e negligenciada. Mas o medo sumiu tão rápido quanto apareceu, com a notícia daquele papel gritando mesmo em seus sonhos mais profundos. Amir a encontraria, por mais que ela fugisse.
Fugir dele seria fácil. Mas fugir da morte?
Laura acordou na casa da amiga. O quarto de hóspedes era muito bem equipado com móveis em madeira, envernizados, lindos. Ela se sentia deslocada num ambiente tão propício para ser feliz. Não casava com sua realidade.
Laura não sentia a doença ainda. Ela, a doença, não existia. Era só uma projeção ruim de uma fantasia carnal e mal resolvida. Teriam sacado errado. Sim, ela não sentia nada. A doença ainda não viera visitá-la. Talvez o ser humano nasça para viver para sempre.
- Amir veio visitá-la. – a amiga disse ao acordá-la.
A gente reconhece tão bem os começos dos começos. São tão lindos, geralmente. Mas reconhecer o começo do fim é algo perturbador. Laura percebeu que esse era o momento antes de Amir entrar no quarto e falar tudo aquilo que a ofendeu tanto, apesar de ser verdade. Ela destruiu não só o relacionamento, mas como uma família inteira. E então? Como lidar com esse peso destrutível que começa a cair?

Mas há uma doença e a morte espreita em cada esquina. Então, melhor ficar quietinha que tudo há de se resolver.
Laura começou a chorar antes de Amir entrar no quarto, pois sabia que, de vez em quando, ela, a morte, pode se tornar uma escolha.

Soneto da Tecnologia

Eu sou eu mesmo, meu eu, e nada pode dizer que não
Exceto se me subjugam face ao desconhecido.
Contudo, permaneço no vazio, ferido e são
Sendo mais que um tumulto, mais que um desiludido.

Sou eu mesmo, criando mistérios coloridos num cartão
Que entrego a vós sem expectativa, nenhum pedido
Sou, mesmo assim, grasnando, um pedido de socorro em vão.
Sou mais que um filho da mágoa, incorrigível e fodido,

Tenho, na extensão do corpo, um resquício de vida,
Uma lembrança de humanidade semeada perdida,
Como numa vala onde cabe qualquer indigente.

Falando assim, transmuto-me num ser delinquente
Que só permite a si mesmo um minuto presente

Antes de me despedir e sumir da minha vida sofrida.