Ele seria o voto perpétuo
de humanidade dentro de sua casta divina. Repleto de desejo morno, cada uma de
suas reentrâncias seria encharcada de líquido ardente e suavemente se
enterraria no frescor da madrugada. De manhã era anjo, de noite, homem. Como
uma lagarta imortal, ele nasceria borboleta todas as noites apenas por querer
ser.
O respirar grave da
madrugada lhe disparava o coração e abusava de sua droga preferida. Há certo
tempo experimentara pela primeira vez a adrenalina do segredo e por ela se
viciara. Trocava segredos com pedras e estrelas, revivendo e compartilhando com
elas o dia anterior. Tinha consigo uma trilha sonora inspiradora, seus ídolos,
aqueles por quem sentia inveja, primeiro por terem dito tudo o que ele pensava
antes mesmo de estar vivo para formular uma frase e depois por terem vivido
tudo da forma que ele gostaria de viver sua própria vida. Mas as pedras e as
estrelas o fitavam com censura cada vez que ele comentava tal descontentamento.
Lembravam-no de sua casta e de que talvez não fosse pro céu. Assunto para se
preocupar outro momento.
- Hoje eu acordei com
medo, mas não chorei nem reclamei abrigo...
Sua alma sorria, suas
extremidades sorriam, cantava baixinho, apenas pra si, mas era o bastante pra
se fazer feliz. Feliz sendo fantasma de uma vida noturna, com os sentidos
aguçados que o permitiam, mesmo longe, ouvir a respiração dos seus amados que
dormiam e sonhavam em outros mundos. Ele não gostava de sonhar no mundo dos
sonhos. Ele queria sonhar no mundo dos vivos.
- Vamos! Mais!
Quem dissera?
Não faria importância
saber quem estava ali dando os palpites como se manipulasse suas próximas
ações. Ele apenas ouvia a voz que saía do fundo de seu coração cinzento, como
um escravo obediente, e avançava um pouco mais dentro da escuridão de seus
desejos.
O fogo de seu isqueiro não
fornecia luz suficiente para trazê-lo de volta de sua viagem, apenas servia
para acender seu cigarro. Uma tragada enquanto ele contemplava o céu que um dia
seria seu e o mundo, preso em suas mãos, se tornava refém de seu segredo
maldito e de seu mirabolante plano suicida que lhe faltava coragem para
executar. E brincava com esse mundo como se fosse uma bola e ele uma criança
sádica. Gostava de pensar em maneiras de torturar alguém e de torturar a si
mesmo com pensamentos ciumentos e com amores impossíveis. Sentia que era pai da
noite órfã e que os dois tomariam posse do planetinha preso em suas mãos.
A fumaça pairando no ar
era a alma de um cigarro violentado, engolido na ânsia de outro mais. Os poros
de sua pele se expandiam e ele ganhava proporções alarmantes dentro da noite. Sua
loucura o levava numa queda livre em espiral e ele queria abusar de si mesmo,
estudar-se, dominar-se por completo, assumir controle da própria vida e
destino e não deixar que mais ninguém fizesse isso por ele. Escorriam lágrimas
infantis num choro igual ao de uma criança birrenta. As estrelas o olhavam com
pena. Criança egoísta, era isso que ele era.
As pedras amaciavam seu
corpo que se derramava numa cena triste, e choravam junto com ele enquanto
tossiam por causa da fumaça. O cheiro de tabaco seria facilmente lavado de seu
corpo e roupas, mas permaneceriam todos aqueles sentimentos. O vazio seria para
sempre seu pior inimigo e seu tão amado esconderijo secreto.
O sol não apareceria
depois. Levaria horas ou talvez dias para que ele preponderasse sobre a noite.
E aquelas noites de fumaça e poesia seriam cúmplices de todas as aventuras
profanas que ele viveria ali e depois, fora dali.
No fim, era apenas ele e o
segredo de sua existência. Sua humanidade depravada, deslocada e honesta. Ele e
sua própria morte e todo bem que aquela violência lhe fazia.