- Você está bem?
Ele me perguntou e eu senti uma
raiva tremenda crescer dentro de mim. Senti-me num confronto, no meio duma
arena, de armadura e espada na mão, enquanto milhares gritavam o meu ou o nome
dele. Morro eu, ou morre ele.
- Claro que estou.
Escudo em pé. Foi o que fiz diante
da ameaça da espada do inimigo. Quem ele pensa que é pra me perguntar tamanha
hipocrisia? Se eu estou bem? CLARO QUE ESTOU BEM.
- Mesmo mesmo?
A voz dele era carinhosa enquanto
se sentava no sofá do escritório. Depois de cinco dias sem nos vermos, parecia
uma eternidade pra mim que se desdobrava em aclamações de vitória e uma saudade
moribunda.
- Mesmo mesmo.
Abaixei o escudo. Como se eu
quisesse que ele visse meus olhos marejados de lágrimas por trás da armadura.
Por que ele não vem e me abraça e diz que cuidará de mim?
- Eu ontem fui ao bar com a
Angélica.
Não perguntei nada. Não quero
saber de sua vida. Não quero saber de sua vivência, de seus amigos, de seu amor
existente e ausente. Não quero saber o que te fez feliz. Não quero saber o que
te faz feliz ou o que te adoece. Quero que você desapareça!
- E como foi?
Foi divertido, é claro. Foi
engraçado, ele bebeu e riu e foi pra casa com o idiota da moto. Eu estava
dormindo tranquilamente nos meus dois colchões de solteiro, um sobre o outro,
embaixo da janela do 15º andar. Fazia um frio do caralho. Sabendo que sonharia
com ele. Meu inconsciente anda me traindo de uma forma ridícula...
- Foi engraçado. A gente riu
bastante. Depois fui pra casa.
Ele toma cuidado pra não me
dizer. Odeio quando ele toma cuidado. Odeio quando ele se detém, pensando que
irá me machucar. Por acaso sou feito de açúcar?
- Eu nem fiz nada ontem.
Foi o que eu disse. Porque não quero
compartilhar minha vida. Só que eu fiz muita coisa ontem. Bebi meu vinho, comi
meu queijo, assisti dois filmes de diretores renomados que eu precisava
assistir (não gostei de nenhum). Joguei algum jogo de gráficos ruins e venci.
Fumei os últimos cigarros da carteira enquanto olhava o céu e me perguntava. E
te odiei muito.
- O que você vai fazer hoje?
Eu vou me afogar na garrafa de
uísque e não quero que ninguém me veja. Quero estar bem longe de você, dos seus
planos, das suas felicidades, do seu sorriso, do seu cabelo, do seu cheiro. Bem
longe do seu futuro. Bem longe da sua amizade. Eu não quero ser amigo de
ninguém. Não preciso da sua amizade. Não quero nada de você. Nada.
- Preciso dormir cedo. Amanhã
tenho um trabalho na faculdade.
Amanhã acordo às três da tarde.
Depois de curtir minha vida solitária no meu apartamento. Moro sozinho, me
proporciono alguns luxos.
- Que pena. Quem sabe, final de
semana que vem...
Sua falta de tato, sua
insensibilidade me matam! Olha pra mim! Olha bem pra mim! Olha bem pra minha
cara, para os meus gestos! Minhas sobrancelhas oblíquas, minha boca
contrariada! Não faz bem nada disso! Eu te dei uma passagem só de ida para
outras terras! Embarque no trem e vá! Suma! Não quero mais fingir. Essa máscara
fácil já me cansou! Deixa-me no escritório, vá fazer sua função e nunca mais
entre aqui! Aliás, nunca mais apareça na minha vida! É só isso que eu quero! Já
que você não pode me dar o que eu gostaria, suma! Não quero ser amigo! Quero
ser lembrança boa! Quero ficar no passado! Não quero presente...
- Podemos combinar semana que
vem.
- Vou ali pegar um copo de café.
Já venho.
Ele foi e voltou. E ficamos horas
conversando e rindo e não fizemos nosso trabalho. É tão bom estarmos juntos. É
o sonho materializado com uma dose de ironia que não me deixa seguir adiante.
Talvez, se eu falasse... Mas, não! Ele tem alguém. Alguém que o compreende
melhor do que eu. Alguém que fornece melhores práticas sexuais do que eu.
Alguém que lhe apetece melhor a visão do que eu.
- Eu te amo.
- O quê?
Ele me olhou assustado, quase
apagando a luz do escritório para irmos embora.
- Eu amo o jeito com que você
fala das coisas.
Santa tangente.
Deixa pra lá. O caminho da dor só
vai até algum ponto. Minha armadura cederá em algum momento, a espada dele irá
me perfurar ainda mais o coração. Alguém vai morrer.
No amor não correspondido, alguém
sempre morre. Serei eu?
Distância. Atenda-me. Por favor. Suma.
Pra que eu possa viver.
Pra que eu possa viver.
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