Aquele momento foi diferente. O momento,
resultado de um estímulo qualquer que desencadeou a compreensão de algo mais do
que simples que estivera o tempo todo estampado bem ali, diante dos olhos de
Marcos, mas que, por algum motivo, ele não conseguia ver. Ele deixou cair a
caneca cheia de café no chão da cozinha (ela se espatifou com um baque
estridente que seria reclamado mais tarde pelo vizinho de audição sensível do
andar de baixo) e correu até o telefone. Discou o número que ainda estava
gravado na memória, mesmo depois de um ano, e aguardou a resposta, sentindo uma
desconfortável sensação no estômago.
- Alô? – atendeu a voz de uma mulher, quase
um sopro num tom agudo e aveludado. – Marcos?
- Seus cabelos ficaram brancos. – ele disse
sem rodeios.
- O quê? – a voz da mulher não se alterava
com facilidade. – O que você quer dizer com isso Marcos? E por que me ligou às
onze da noite?
- Eu liguei pra te dizer que seus cabelos
ficaram brancos. – sua voz tentava forçar um pensamento particular e óbvio em
seu sentido próprio. – Eles ficaram brancos e eu entendi.
- Você bebeu? – ela quis rir, mas o máximo
que Marcos percebeu pela modulação da voz foi que ela estava sorrindo agora e
isso o deixou tranquilo. – Meu cabelo não ficou branco! Do que você ta falando?
- Você não se lembra? Dois meses antes de
você sair de casa. Você olhou no espelho e percebeu que havia um punhado de
cabelos brancos na parte de trás da sua cabeça, assim, acima da nuca. Não se
lembra? – agora ele sorria também.
- Ah... – ela finalmente estava começando a
acompanhar a conversa. – Sim, sim, eu me lembro disso. Você me ligou pra falar
isso? O que você quer, exatamente?
- Eu quero que você saiba que eu entendi
agora.
Fez-se silêncio. Um maremoto de sentimentos
arrasou a mulher que estava sentada na cama, o livro em seu colo com a página
marcada para que pudesse retomar a leitura depois de atender ao telefone. O
tempo já havia passado, tudo estava bem. Não havia necessidade daquela
conversa. Pressentiu que o que ouviria nos próximos minutos de nada
adiantariam agora.
- Entendeu o quê, Marcos?
- Que você também sofreu. – e uma lágrima
ligeira escorreu pelo seu olho direito, acompanhada por uma atrasada que desceu
do lado esquerdo do rosto e foi se juntar à irmã no chão da sala.
- Eu realmente preciso dormir, Marcos... –
fantasmas retornando dos túmulos, demônios sendo acordados, feridas
cutucadas... Ela não tinha tempo para isso.
- Eu sei, eu sei. – ele abaixou a cabeça e
mais duas lágrimas brotaram em seus olhos. – Sei que você trabalha, sei que
você tem pouco tempo para tudo isso, sei que você nem mesmo quer saber disso e
eu respeitei até aqui o seu pedido, o seu pedido de que eu não voltasse atrás,
não fosse procurar você para contar nada da minha vida nem pra perguntar da
sua, nem ao mesmo pra saber se você estava bem ou viva. Mas eu te liguei porque
você precisava saber. Precisava saber que eu não sou um qualquer. Não sou um
monstro. Eu só precisei de um tempo um pouco maior para entender seus sinais.
Ela não sabia o que responder. Sentiu
repentinamente que estava frio no seu quarto no décimo andar. Fez menção de se
levantar e fechar a janela, mas o pensamento lhe escapou tão rápido quanto
apareceu. Estava plenamente concentrada naquelas palavras e na sua redenção.
- Você sabia que isso é um reflexo?
Acontece e não é raro. Os cabelos podem ficar brancos devido ao nível de
estresse da pessoa. E foi isso que você me mostrou. Não foram apenas suas
palavras rancorosas como socos que você distribuía todos os dias. Enquanto você
dizia uma coisa, seu corpo dizia outra. Você sofreu.
- Você sabe que sim. – ela disse com a voz
controlada.
- Não, não to falando de depois. To falando
do tempo em que ainda brigávamos. E você dizia coisas terríveis sobre eu ser
uma decepção e sobre não ser o homem que você imaginou que eu fosse, que só se
arrependia dos últimos três anos... Mas era mentira, não era?
- O que você acha? Sinceramente? – e havia
certo sarcasmo em sua voz.
- Acho que sim. – sarcasmo que talvez tenha
passado despercebido por Marcos. – Você estava sofrendo com todo aquele cenário
de destruição que era nossa casa. Assim como eu. Ou talvez até mais. Porque eu
colocava tudo na mesa, principalmente na hora de jantar. Você, não. Você
sofreu, meu amor. Você sofreu...
- Pode haver centenas de explicações para o
aparecimento daquele branco nos meus cabelos.
- Só existe uma. E você sabe disso.
Orgulho é um escudo que longe o suficiente
pode ser belo. De perto pode ser irritante. Mas sempre é feito de material
frágil. Um escudo de palha. E Marcos estava prestes a atear fogo naquela defesa
inútil.
- Eu sinto muito. Eu me coloquei no centro
de tudo como uma criança birrenta. – ele disse e já não chorava mais. Estava
sendo um homem corajoso, ou, pelo menos, se convencia de que sim. – Não te dei
espaço para sofrer. Mas que droga, não te dei espaço nem para falar, pedir ou
argumentar, acreditando que o pesar era só meu... E quando você sofreu, eu
poderia ter te dado espaço para sofrer e isso talvez tivesse te ajudado a olhar
mais precisamente para as coisas e mudar, crescer, evoluir, mas não consegui
fazer isso porque eu estava no centro do universo. E aí seu cabelo ficou branco
e nós rimos e transamos naquela noite e foi maravilhoso, mas o dia amanheceu e
o horror recomeçou com os primeiros raios de sol... Eu até tenho marcas que
talvez não desapareçam nunca mais. Mas o que mais me doeu mesmo foi ver você ir
embora.
- Você me mandou embora. – magoava-se mais
a cada palavra.
- Não porque não te amava mais. Mas porque
te amava demais. E nosso caminho não nos fazia feliz.
Um silêncio maior todo dedicado às lágrimas
e às gigantes tsunamis de emoções que varriam os dois de seus lugares cômodos e
os transportavam para um ano atrás repleto de memórias.
- Você pintou seu cabelo depois. E aí não
percebemos que ele era um sinal do seu corpo, um sinal que indicava alguma
enfermidade. Achamos apenas que era velhice precoce. Mas era, na verdade, a morte
de algo.
- Não seria da juventude mesmo? – ela indagou
com voz trêmula e insegura.
- Não. O que morria era algo belo demais
para ser tão efêmero como a juventude. Era algo morno e quase palpável.
- O amor?
- Não sei.
Alguma sirene cantarolou lá fora, no lado
da cidade em que Marcos morava. Enquanto ela chorava mais um pouco e ouvia o
elevador do prédio trabalhar em sua subida, Marcos tratava de recompor sua
emoção.
- Você me perdoa? – ele indagou, sincero e
otimista.
E então era esse o epílogo do livro que
escreveram juntos. Sem recomeços, porque eles são como promessas velhas que não
cumprem seu papel. Sem picos extremos de drama adolescente. Apenas uma redenção
inusitada e até mesmo bem-vinda. Um presente? Noites melhores de sono? Paz
interior? A luz verde que libera a estrada que se estica à frente, cheia de
possibilidades?
- Sim. – ela disse e sorriu mais uma vez.
Desejaram boa noite um para o outro e foram
deitar imediatamente, abraçados com as lembranças de uma vida que era tão
familiar que foi como dormir num berço no primeiro ano de vida. Aquele algo
morno e quase palpável ainda estava lá, adormecido também, mas despertaria
prontamente, quando a hora chegasse, pois essa força estranha se alimenta de movimentos e nunca chega a lugar nenhum. E não é mesmo pra chegar a algum
lugar. É algo que apenas caminha.
E isso proporciona felicidade.
Nenhum comentário:
Postar um comentário