Tive um tempo. Escondida debaixo
da escada. Dentro do guarda-roupa. No porta-malas. Escondida. Sufocada. Mas
tive um tempo para poder te escrever mais uma carta.
Elle anunciou que chegaria. Deixou
tudo pronto. Preparou-me inteira, como um médico que prepara um paciente para a
cirurgia. Fui preparada com precisão cirúrgica. Pois o que ele expurgaria de
mim mais tarde...
Elle costumava cantar bastante,
talvez tenha sido cantor numa vida passada. Ele entrou no recinto cantando sobre
como não viveria como alguém que só espera um novo amor, pois, enfatizava ele,
havia outras coisas no caminho pelo qual seguia. E ele sempre estava
procurando. Procurava algum carro novo, alguma foto antiga, alguma lembrança
reprimida de sofrimento familiar, alguém que ocupasse seus lugares... Ele se
resumia em procura. Nunca em encontro. Sempre em procura.
E suas procuras, tão
dispensáveis, o tinham trazido até ali. E eu o vi pela primeira vez. Claro,
soube de tudo isso depois apenas. Não sustentamos olhar. Seria arriscado
demais. Eu, que nunca mais seria completa, não queria nem sequer pensar na
possibilidade de repousar em seu dorso. Mas era só o que eu conseguia pensar.
Repousar junto dele.
Quando o conheci melhor, foi como
terminar um quebra-cabeça de mais de mil peças. Dava certo. Completavam-se as
peças. Como engrenagens. Como numa música de Chico Buarque. Como uma taça de
vinho no frio de Julho. E eu só queria saber em qual rua a minha vida
encostaria na dele. Uma promessa esquecida. Ele era uma promessa adormecida. Uma
promessa quente, regada a álcool, música... Aventura.
Eu fiquei confusa por muito tempo.
E confundi todo mundo ao meu redor. Até que o universo conspirou para que pudéssemos
experimentar mais de perto o corpo um do outro. E foi mágico. Erótico. Eu me
rendi. Pus as mãos pra cima e simplesmente me entreguei com a alma toda. Fundimo-nos
num abraço apertado e o mundo parou por várias horas. E quando nos olhamos eu
não sabia o que falar. Logo eu, que treinava tantas frases de efeito no espelho
para quando esse momento chegasse, fiquei sem palavras. E talvez eu nunca mais
voltasse a falar. Ou a amar novamente. Pois estava embriagada por aqueles olhos
de James Dean. E ele emudeceu também diante de mim. Ficamos mudos, contemplando
a promessa gritante refletida no olhar do outro.
Estivemos juntos por um bom tempo
depois daquilo.
Hora de testar a fortaleza tão
minuciosa que eu tinha erguido diante de mim.
Bom, o fracasso foi épico. De
nada adiantaram minhas defesas. Eu voltei a ser menina. Adolescente. Passional.
Fui adoecendo. Querendo demais. Esperando demais. Com tanta urgência que ficava
sem ar só de olhar no espelho. De tirar uma foto. De viver mais. Eu não cabia
em mim. E por quê? O que ele fazia de tão especial? Por que era homem? Ou por
que era incompleto? Não havia nada de diferente nele! Nada!
Ele nem ao menos estava comigo.
Estava. Mas não estava.
Coitado, ele tentava.
Mas não estava.
Agora, enquanto escrevo pra você,
eu sinto pena de todo aquele sofrimento dele. De toda aquela incompletude que
ele vivia. Ele nunca me fez mal. Ele apenas tentava. Eu que fazia mal a mim
mesmo. E tudo que ele fez foi pouco, porque eu estava apavorada. Ele me
transformou nesse monstro devorador, abusivo, um monstro enlouquecido, egoísta.
Eu o cercava no escuro, o pressionava no escuro. Queria respostas. Queria
promessas. Que nunca vieram. Não viriam mesmo. Ele me dilacerou. Ele deixou todas
minhas vísceras expostas na mesa, no chão, na praça. Ele me virou do avesso. Eu
me perdi completamente naqueles meses. E só porque não o alcançava. Não o
resgatava. Não importava o que fizesse.
Sabe? Há algumas pessoas que são
quebradas. Elle era quebrado. Eu pude ver de perto como é uma pessoa dessas e é
horrível. A vida se perdendo e escorrendo dos olhos, que sempre estão
distantes. É muito triste de se ver. E foi o amor que o deixou assim. A promessa
dolorosa e incompreensível, que desafia a inteligência e nos coloca diante de Deus
e do Diabo. O amor que também não permaneceu ao seu lado, que também o
destruiu, o consumiu e sumiu. E ele nunca mais se ergueria de novo.
O amor.
Não sei que nome dar. O amor que
eu senti por ele me destruiu por inteira. Quando ele partiu correndo sem olhar
pra trás, eu estava em cacos pela rua íngreme. Ninguém me juntou. Não quis que
ninguém me tocasse. Eu mesma me recompus. E evoluí. E aprendi. Tive ódio
depois. Por muito tempo cultivei demônios como numa plantação, num beiral de
janela enfeitando meus olhos e tudo que eu via. Mas evoluí. Compreendo-o como
uma mãe agora. Mas, mais do que isso. Foi ele quem me ensinou que eu sou muito
mais importante do que qualquer relação que eu terei na vida. Mesmo assim,
sinto que algo ele quebrou em mim também. Desde que ele se foi, há algo que
nunca mais voltou. Não sei dizer o que é.
Foi ele que me deu a ideia de escrever
cartas.
Sinto saudade de sua presença na
madrugada. Sempre quando é madrugada. Sempre quando eu tenho fome. Sempre
quando alguém canta algo que ele cantava. Sempre quando penso em me render. Em
erguer os braços e me entregar. Quando bebo uísque. Quando tenho vontade, mas
tenho medo. Quando sou imatura. Quando sou criança. Quando sou adulta. Quando
sofro.
Mas nunca sei disso.
Quando tudo se findou, ele dizia que o que tínhamos era real.
Nunca saberei essa resposta.
Eu não sei o que sentir. Talvez essa
seja a conclusão dessa carta. O desfecho dessa história mal contada que ainda
tem pontas soltas. Sei que ele me fez crescer.
Só isso.
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