Prelúdio para "O Diabo na Estrada".
Uma notícia ruim é como um câncer.
Tudo que toca, destrói.
Um pedaço de papel, sulfite, A4, e aquela confirmação em
negrito, itálico, sublinhada, exaltada, gritando para todas as paredes. Não,
não é câncer.
Mas é como se fosse.
Laura coloca os vários papeis em cima da cama e fica olhando
pra eles durante vários minutos. Ou segundos? Talvez fossem horas... Ela escuta
buzinas, alarmes de carros, sirenes de ambulâncias, gritos, risadas... Durante
a tarde, o bairro é bem tranqüilo, pode-se ouvir os ambulantes vendendo suas
bugigangas com naturalidade e os pedestres criando conflitos com motoristas.
Mas nada sai do ordinário. Ela que se desloca da realidade com uma rapidez que
se aproxima à velocidade da luz.
“Eu sou a morte!” – grita o papel em seu colo.
A última página foi a definitiva. De resto, tudo normal.
Laura que não chorava há alguns anos, pois decidiu ser
mulher forte. Laura que não se angustiava por nada, tomava seus ansiolíticos
com regularidade, pintava quadros, já que não dançava mais, apenas para expor a
gravidade de seus sentimentos impróprios. Justamente ela! Culpada de ser quem
é. Culpada pelo resto da vida. Agora, ali, olhando para aquele papel, sentia-se
uma criança diante da expulsão da escola. Como contar aos pais?
O tempo, imóvel naquele quarto, se desdobrava em pensamentos
para Laura. Conheceria Veneza, das histórias românticas? Veria o Coliseu, dos
bravos gladiadores? Ou a pop Nova York e seus teatros belíssimos? Veria o sol
amanhã? Veria o próprio rosto no espelho? O próprio rosto no espelho não a
reconheceria, então, melhor não! Decisões mais sábias daqui pra frente.
Duas batidas na porta.
Ela, de sobressalto, exclama um “entra!” e continua vidrada
no papel que definiria sua existência pelos próximos anos.
- Eu vim procurar meu irmão.
Barba rala, esse pobre coitado. Nunca conseguiu crescer uma
barba descente. Não deve nem ter pelo na bunda. Simas, o cabeça baixa, o
sorridente, porém, inacabado ser humano, esse, cuja presença ninguém se detém
falando muito pra não deprimir os outros, entra no quarto, afoito, contido
também, numa mistura de querer e não poder que só ele sabe fazer. Esse mesmo
ser humano desprezível entra no quarto.
- Cadê o Amir?
- Você ta vendo ele aqui? – tratá-lo com rispidez faz Laura
sentir-se bem.
- Não, não. – ele parece confuso, desligado. – É que eu
precisava mesmo falar com ele.
- Pode falar pra mim. Eu sou a mulher dele. – Laura se
levanta, impõe-se, parece uma fênix.
- Você sabe pra onde ele foi? – Simas questiona com um
desespero latente. – Onde ele está agora?
- Ele saiu comprar umas coisas. – ela não fazia a menor idéia.
Aliás, boa pergunta, onde estaria Amir agora? – Fale pra mim, seja lá o que
for.
- Bom, você sabe que né... Ele foi me entregar, Laura!
Os olhos de Simas brilhavam com algo que pareciam lágrimas.
Mas não, talvez fosse apenas o reflexo da lua cheia.
- Você mereceu! – concordou ela.
- Eu jamais mentiria pra você.
Você é mulher do meu irmão! Você o tocou! Você fez sexo com ele... Você... Você
se deita com ele, sente o corpo dele... Eu não mentiria pra você.
Simas estava muito desconfortável
ao falar isso. E até meio violento. Mas lançava um olhar de desejo a Laura. Um
olhar que ela não revidou, mas também não ignorou.
- Eu vim aqui pra pedir pra ele
não fazer isso! – ele exclamou, com a voz fina de alguém desesperado.
Ok. Foda-se. Quando se está
morrendo, apenas se morre. Alguém tem culpa e quando a culpa é nossa, é
preferível colocá-la em outra pessoa. Melhor que o mundo acabe em sexo e morte
do que em dor! No desespero de beber da água da vida, a gente acha subsídios em
qualquer órgão genital.
- Você me parece cansado. Venha
aqui. Eu te ofereço conforto.
Quando temos a morte ao nosso
lado, a gente a oferece. Tocamos tudo com a nossa morte. Talvez, na esperança
de trocá-la por vida.
Simas avançou com um desejo
selvagem e agarrou o seio de Laura. A camisola que ela usava foi facilmente
rasgada. Ambos sabiam que nada disso estava correto, mas eles nunca haviam
seguido a regra. Então, estava tudo bem.
- Você ta com o cheiro dele.
Ela teve que empurrar o rosto dele
para longe.
- Do Amir?
- Sim. – ele sorria, refestelado de prazer. – Sim, o cheiro
dele.
- Isso é bom?
- Não sei. Mas vamos continuar.
Ela teve um flash de lembrança. Amir e ela. Marido e mulher.
Promessas para sempre. Talvez não estivesse certo quando ele tocou a coxa dela.
- É melhor parar. – ela pediu, mas sem muita convicção.
Ele não parou. Tocou os seios dela com as mãos cheias de
desejo.
- Vá com a boca. – ela pediu, já entregue.
Eles fizeram o sexo que tinham pra fazer e depois foi só
isso. Ele saiu envergonhado do quarto, não terminou de se defender. Ela não se
cobriu de vergonha, como de costume, hábito idiota, já que nunca sentira
vergonha depois de um sexo casual, mas gostava de manter certa pose
politicamente correta, segundo ela.
- Me leve pra longe, Simas! Me tire daqui! – foi o que ela disse
na hora do orgasmo.
- Não fale pro meu irmão sobre isso! – ele pediu depois do
orgasmo dele, com resquícios de lágrimas no rosto.
- Jamais. – ela confirmou, sorrindo, maldosa, rindo da falta
de cuidado de Simas.
- Eu o amo. – e ele falava muito sério, ela sentiu.
Um gosto amargo apareceu na língua de Laura minutos depois.
Irmão versus irmão. Que indelicadeza se meter nisso.
Diante da morte, Laura adormeceu, temerosa, talvez ele
tivesse plantado a semente da mentira em seu ventre e isso crescesse numa
criança doente e negligenciada. Mas o medo sumiu tão rápido quanto apareceu,
com a notícia daquele papel gritando mesmo em seus sonhos mais profundos. Amir
a encontraria, por mais que ela fugisse.
Fugir dele seria fácil. Mas fugir da morte?
Laura acordou na casa da amiga. O quarto de hóspedes era
muito bem equipado com móveis em madeira, envernizados, lindos. Ela se sentia
deslocada num ambiente tão propício para ser feliz. Não casava com sua
realidade.
Laura não sentia a doença ainda. Ela, a doença, não existia.
Era só uma projeção ruim de uma fantasia carnal e mal resolvida. Teriam sacado
errado. Sim, ela não sentia nada. A doença ainda não viera visitá-la. Talvez o
ser humano nasça para viver para sempre.
- Amir veio visitá-la. – a amiga disse ao acordá-la.
A gente reconhece tão bem os começos dos começos. São tão
lindos, geralmente. Mas reconhecer o começo do fim é algo perturbador. Laura percebeu
que esse era o momento antes de Amir entrar no quarto e falar tudo aquilo que a
ofendeu tanto, apesar de ser verdade. Ela destruiu não só o relacionamento, mas
como uma família inteira. E então? Como lidar com esse peso destrutível que
começa a cair?
Mas há uma doença e a morte espreita em cada esquina. Então,
melhor ficar quietinha que tudo há de se resolver.
Laura começou a chorar antes de Amir entrar no quarto, pois
sabia que, de vez em quando, ela, a morte, pode se tornar uma escolha.